Título: Lei que obriga doação de lotes em Goiânia leva empresários à Justiça
Autor: Izaguirre , Mônica
Fonte: Valor Econômico, 12/11/2007, Brasil, p. A2

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Uma mudança na lei municipal de parcelamento de solo está tirando o sono dos empresários do setor imobiliário em Goiânia. Desde junho, loteamentos em áreas que entraram na expansão urbana da cidade depois de agosto de 2006 só podem ser autorizados mediante doação de 15% a 25% dos lotes, já urbanizados, para programas de habitação popular da Prefeitura.

A medida é polêmica porque, além de impor novos custos às empresas, indiretamente, impede novos loteamentos exclusivos de classe média ou classe média alta - nichos mais explorados pelos loteadores no Brasil atualmente. Como a doação se aplica a cada novo parcelamento individualmente, mesmo em empreendimentos destinados a faixas de renda mais alta, os pobres terão chance de se instalar, por intermédio dos programas da Prefeitura.

A nova lei - que já é objeto de ação judicial movida pelos empresários - foi aprovada pela Câmara de Vereadores a partir de projeto encaminhado pelo prefeito Iris Rezende (PMDB), ex-governador do Estado. "Só assim será possível combater o déficit habitacional da cidade", defende o secretário municipal de Planejamento, Francisco Vale Júnior, estimando o número em 20 mil.

A lei adotada por Goiânia estimula um debate em torno também da reforma da legislação federal de parcelamento de solo. Urbanistas politicamente mais à esquerda, como a ex-secretária de Programas Urbanos do governo Lula, Raquel Rolnik, defendem que se aproveite o projeto de alteração da Lei 6.766/79, que tramita na Câmara dos Deputados desde 2000, para estender modelo semelhante a todo o país.

Na avaliação de Raquel, professora da PUC de Campinas, a doação de lotes para programas governamentais, em todos os novos parcelamentos, é necessária para frear as ocupações irregulares. Ela argumenta que a lógica de mercado sempre eleva o preço da terra quando se permite a sua ocupação legal e a urbanização. Então, defende, o poder público precisa interferir para reservar aos pobres um lugar nessas áreas. Caso contrário, "essas pessoas continuarão cada vez mais a ocupar as únicas áreas que lhes sobram, aquelas onde a mercado formal não entra, porque legalmente não pode, como as áreas de proteção ambiental".

A reserva de terrenos prontos em todos os novos parcelamentos, destaca ela, permitiria rápida formação de um grande "banco de lotes" para o desenvolvimento de programas governamentais conjuntos entre prefeituras, Estados e União. A urbanista alerta que, com a crescente oferta de financiamento habitacional, se o poder público não agir, o preço dos terrenos tende a aumentar ainda mais, tornando o mercado ainda mais excludente para faixas de renda mais baixa.

Se depender do relator do projeto, deputado Renato Amary (PSDB-SP), a reforma da Lei 6.766, porém, não vai impor às demais cidades a mesma regra adotada por Goiânia. "Sou contra. Adotar ou não esse modelo deve ser escolha de cada município", justifica.

O presidente da Comissão de Desenvolvimento Urbano da Câmara dos Deputados (CDU), deputado Zezéu Ribeiro (PT-BA), gosta da idéia de reservar lotes para famílias de baixa renda em todos os novos parcelamentos. Ele chegou a cogitar a apresentação de uma emenda nesse sentido ao projeto, quando o debate (que ainda está numa comissão especial) chegar ao plenário da Câmara. Mas concluiu que é melhor apenas abrir essa possibilidade, sem impor uma regra aos municípios.

A lei de Goiânia permite que os lotes recebidos pela Prefeitura sejam doados a famílias com renda de zero a três salários mínimos, que residam na cidade há pelo menos três anos. No fim de cinco anos, o imóvel poderá ser vendido pelo beneficiário do programa, que terá prazo de dois meses para começar e de dois anos para concluir a construção da moradia, sob pena de ter que devolver o lote.

Francisco Vale Júnior descarta qualquer risco de a seleção das famílias ser feita com base em critérios políticos, já que não será responsabilidade exclusiva da Prefeitura, passando também por um conselho municipal, fiscalizado e integrado pela sociedade civil. Ainda assim, os empresários suspeitam que a lei tenha sido proposta com fins político-eleitorais.

"Esse é um instrumento politiqueiro, que provocará migração predatória e favelização da cidade", critica Marcelo Baiocchi, presidente do Secovi de Goiás, sindicato que representa as empresas do setor imobiliário. Ele antevê em Goiânia processo semelhante ao ocorrido no Distrito Federal. Nas mãos do hoje ex-governador Joaquim Roriz, também do PMDB, a doação de lotes mostrou-se eficiente instrumento de formação de base eleitoral.

Com apoio maciço da população de baixa renda que migrou para o Distrito Federal atrás de lotes, Roriz ganhou três eleições, em 1990, 1998 e 2002, depois de ter ocupado o cargo por indicação, de 1988 a 1990. Como não havia terreno para todos os migrantes, muitas ocupações irregulares se formaram, com a tolerância do governo.

Francisco Vale Júnior defende a nova lei dizendo que ela evita apropriação exclusivamente privada dos ganhos proporcionados pela valorização de terras. Em geral, essa valorização decorre de investimentos do poder público ou da decisão do município de mudar o uso do solo, de rural para urbano. "Mesmo sem investir nada, os proprietários de grandes áreas vêem o valor de seu patrimônio multiplicar-se por até seis vezes. Então, é justo que, nos parcelamentos, uma parte desse ganho seja revertida em favor do poder público, para ser aplicado em programas sociais ", diz.

Por outro lado, o Secovi alerta para o encarecimento que a doação imposta às empresas tende a provocar nos lotes que sobrarem para comercialização. Como os custos de implantação da infra-estrutura não poderão mais ser divididos entre todas, o preço das unidades disponíveis para venda vai subir pelo menos 17,65%, estima a consultoria Tendências, em estudo sobre o caso. Analisando dados do IBGE, os consultores concluíram que, entre as famílias sem imóvel próprio que até então tinham renda suficiente para comprar lote à prestação em Goiânia, 15,8% deixarão de ter essa capacidade, em função do esperado encarecimento dos terrenos. Mesmo excluindo aquelas que poderão se beneficiar das doações, o universo de famílias que seriam prejudicadas pelo aumento do preço dos lotes supera o das que poderiam entrar nos programas da Prefeitura, alerta a Tendências.

Os consultores prevêem também uma fuga de empreendimentos imobiliários para cidades vizinhas. Principalmente empresas que visam a atender compradores de classe média alta tenderão a transferir seus projetos de investimento, imaginando que será difícil vender para esse público loteamentos onde será obrigatória a presença de construções de padrão bem inferior.