Título: A Constituição e a autonomia dos sindicatos
Autor:
Fonte: Valor Econômico, 12/11/2007, Legislação & Tributos, p. E2

O jornalista Raymundo Costa, em seu artigo "Centrais foram pegas no contrapé", publicado no Valor em 23 de outubro, afirma que as organizações sindicais alegam não só que a emenda apresentada pelo deputado federal Antonio Carlos Pannunzio (PSDB) provocará o enfraquecimento do movimento sindical, como também que a mesma se caracteriza por interferência do Estado nas entidades sindicais, o que seria vedado pela Constituição Federal, mais precisamente em seu artigo 8º, inciso I. Equivocam-se os sindicalistas.

Desde o advento da Constituição de 1988 é muito comum - e às vezes oportuno - confundir-se autonomia com soberania. A primeira significa a capacidade de se auto-organizar, ao passo que a segunda é atributo do Estado, ao não encontrar dentro de seu território nenhum outro poder jurídico contrastante com o seu. E a expressão máxima da soberania seria, justamente, a submissão de todos, inclusive do próprio Estado, às decisões do Poder Judiciário.

O disposto no artigo 8º, inciso I da Constituição Federal veda que o Estado - leia-se poderes Executivo, Legislativo e Judiciário - interfira ou intervenha nas entidades sindicais. Mas, para se compreender a extensão do dispositivo constitucional, é necessário se distinguir entre a dimensão estática (estrutura, administração etc.) da dimensão dinâmica (relativa à negociação coletiva) das entidades sindicais, onde se deve concluir que a vedação-garantia constitucional se aplica à segunda dimensão. Ou seja, o que se busca garantir às entidades sindicais com a limitação constitucional se restringe ao processo de negociação coletiva, o qual, inclusive, justifica a garantia de emprego aos dirigentes das entidades profissionais.

A dimensão estática, que se refere à estrutura e funcionamento interno das entidades sindicais, está, sim, sujeito às normas legais, sejam oriundas do Executivo, do Legislativo e, principalmente do Judiciário. Sendo espécie de associações, às entidades sindicais se aplica a regra, também constitucional, do artigo 5º, inciso XIX, que prevê a possibilidade mesmo de dissolvição de uma associação, através de processo judicial, desde que garantido o devido processo legal. Não fosse assim, ter-se-ia o absurdo de se considerar as entidades sindicais imunes às disposições legais, fiscalização ou decisões judiciais, quer dizer, seriam as mesmas soberanas, ao lado do Estado brasileiro.

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Esta proposital distorção na interpretação do artigo 8º, inciso I da Constituição Federal leva a que qualquer tentativa de se fiscalizar o funcionamento ou as contas de uma entidade sindical seja vista como um abominável retrocesso aos tempos da ditadura. Mas os defensores desta tese se esquecem que todas as pessoas jurídicas são passíveis de fiscalização dos órgãos governamentais. Sua estrutura e funcionamento é regulada em seus aspectos fundamentais por normas estatais (veja-se, a exemplo, a Lei das Sociedades Anônimas, a lei das cooperativas etc.) e sujeitas às decisões judiciais. Ou seja, nada justifica a imunidade que se pretende atribuir aos sindicatos, federações e confederações.

Por outro lado, se é verdade que a arrecadação e repasse compulsórios de recursos às entidades sindicais criam distorções nas mesmas, pois elas nada precisam fazer para isto ocorrer senão a obtenção de seu registro junto ao Ministério do Trabalho e do Emprego, tem-se que a análise mais criteriosa do problema que envolve atualmente a questão sindical em nosso país é a falta de democracia na sua administração e em seu funcionamento. Submetidos os trabalhadores a jornadas extenuantes em seus postos de trabalho e envolvidos os empregadores na administração de suas empresas ou negócios, pouco ou nenhum tempo ou interesse têm eles de participar das atividades de suas respectivas entidades de classe. Estas, não sujeitas a qualquer tipo de fiscalização de seus representados ou do próprio Estado, acabam por se tornar em feudos hermeticamente fechados, onde não raras vezes se vêem diretorias quase que hereditárias. Neste sentido, com certa freqüência se lê nas páginas policiais notícias de assassinatos de presidentes ou candidatos a presidente de entidades sindicais que envolvem movimentação de grandes quantias de arrecadações sindicais.

Lamentavelmente, o que se verifica nas discussões que envolvem a questão sindical em nosso país é a distorção de fatos e equívocos na interpretação de normas. Por exemplo, a crítica que se faz ao modelo de unicidade sindical e a conseqüente defesa da Convenção nº 87 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) se desenvolve sem uma análise crítica do momento histórico em que esta regra internacional foi criada e a finalidade por ela defendida em relação à realidade econômica e social dos dias de hoje. Mas, sem sombra de dúvida, a aprovação, pelo Senado Federal, e a sanção presidencial do projeto de lei que torna facultativo o recolhimento da contribuição sindical irá, fatalmente, dar um primeiro e importante passo na necessária reforma por que deve passar o modelo sindical brasileiro. Aguardemos.

Henrique Macedo Hinz é juiz do trabalho substituto do Tribunal Regional do Trabalho (TRT) da 15ª Região, mestre e doutor em direito pela Pontifícia Universidade Católica (PUC) de São Paulo, professor universitário e autor do livro "Direito Coletivo do Trabalho" pela Editora Saraiva

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