Título: Geoweb põe, de fato, o mundo em suas mãos
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Fonte: Valor Econômico, 11/10/2007, Tecnologia & Telecomunicaçoes, p. B4

A Terra se materializa, girando majestosamente diante de seu rosto. Hiro estica as mãos e a pega. Ele a gira até encontrar o Oregon. Diz a ela para se livrar das nuvens, e ela o faz, dando a ele uma vista cristalina das montanhas e do litoral."

Essa visão de Neal Stephenson em seu romance de ficção científica "Snow Crash", publicado em 1992, descreve com exatidão o Google Earth, um programa de computador que permite aos usuários "voar" sobre um mapa fotográfico detalhado da Terra. Outras informações, como rodovias, fronteiras e localização de lanchonetes podem ser acrescentadas à paisagem, que pode ser desmembrada, girada, inclinada e aproximada com uma continuidade quase sem emendas. Aqueles que usam o programa pela primeira vez sempre ficam maravilhados quando percebem o que o ele pode fazer. À medida que o globo gira e muda de uma vista para outra, o usuário pode sentir até vertigens.

O planeta virtual do Google incorpora dados sobre elevações que descrevem características da superfície como montanhas e vales. Outras informações são então sobrepostas, especialmente retalhos de imagens de satélite e fotografias aéreas licenciadas de vários provedores públicos e privados. O planeta inteiro está coberto, com cerca de um terço dele apresentado com um grau de detalhes tão grande que é possível ver árvores e carros, além das residências de 3 bilhões de pessoas. Tudo isso era imaginado há muito tempo, mas se tornou possível apenas recentemente, graças às imagens de alta resolução fornecidas por satélites comerciais, conexões de banda larga e computadores potentes e baratos.

A Keyhole, uma companhia americana, lançou seu primeiro geobrowser (navegador geográfico) comercial em 2001. O Google comprou a Keyhole em 2004 e lançou o Google Earth em 2005. Desde então, sua versão básica e gratuita já foi baixada mais de 250 milhões de vezes, afirma Michael Jones, um dos fundadores da Keyhole e hoje o principal tecnólogo do Google Earth.

Em 2004 a Nasa, a agência espacial americana, lançou outro geobrowser chamado World Wind. Mais de 20 milhões de cópias estão em uso. Mas o principal concorrente do Google na área é a Microsoft. Tanto a Encarta, a enciclopédia da Microsoft, quando o TerraServer, um projeto de demonstração de bancos de dados, tinham características de um geobrowser na década de 1990. No fim de 2005, a Microsoft comprou a GeoTango, que contribuiu para o desenvolvimento do Live Search Maps, um geobrowser baseado na internet que usa dados do Virtual Earth, o modelo digital da Terra criado pela Microsoft. (O Google disponibiliza um geobrowser de internet por meio do Google Maps).

Vincent Tao, fundador da GeoTango e hoje o homem que dirige a Virtual Earth para a Microsoft, admite que a Microsoft já gastou algo "na casa das duas centenas de milhões de dólares" no projeto, a maior parte deles na aquisição de imagens que hoje somam 14 petabytes distribuídos por 900 servidores. (Um petabyte equivale a 1 milhão de gigabytes). A companhia também está acrescentando detalhes na forma de modelos de cidades tridimensionais elaborados a partir de fotografias aéreas; dez cidades são acrescentadas todo mês.

De sua parte, o Google conta com o "crowdsourcing" - arregimentando seus usuários para contribuir com imagens, modelos tridimensionais e outros dados para enriquecer seu planeta digital. Até agora, 850 mil usuários já contribuíram com milhões de anotações e mais de 1 milhão de imagens. A Wikipedia, que usa um sistema parecido, também está disponível por meio do Google Earth. Os usuários podem ler os artigos da enciclopédia digital colocados sobre o globo usando geotags - coordenadas espaciais codificadas em cada entrada. Outros sites, como o Flickr, a maior página de compartilhamento de fotografias do mundo, e o YouTube, do Google, também sustentam as geotags.

Esses globos virtuais estão sendo usados de muitas maneiras inesperadas. O Google Earth foi usado para coordenar os resgates em Nova Orleans logo depois da passagem do furacão Katrina, em 2005. Inspetores fiscais de Buenos Aires estão empregando o programa para descobrir se os contribuintes informam corretamente o tamanho de suas propriedades. Um programador italiano que usava o software detectou marcas estranhas no chão, perto de sua casa, que acabaram se mostrando ruínas de uma vila romana desconhecida. Carpinteiros, paisagistas e empresas que instalam painéis solares usam os mapas virtuais para garimpar potenciais clientes.

Rebecca Moore, que faz parte da equipe do Google Earth, usou o programa para mobilizar sua vizinhança nas montanhas de Santa Cruz, ao sul de San Francisco, contra a instalação de um projeto madeireiro nas proximidades. E a Amazon Conservation Team, uma organização não-governamental americana, equipou 26 tribos indígenas da Amazônia com unidades portáteis de posicionamento global (GPS) e computadores que rodam o Google Earth, para permitir que elas exerçam a soberania que legalmente têm sobre suas terras, contra a ameaça de madeireiras e garimpeiros.

"(O Google Earth) está se transformando em um mapa de significado histórico", diz John Hanke, chefe da divisão Earth and Maps do Google, e outro dos fundadores da Keyhole. "Ele está se transformando no mais detalhado mapa do planeta já criado."

Hanke pode estar subestimando a importância da tecnologia. Os geobrowsers são um meio surpreendentemente eficaz de visualizar o planeta. Mas são apenas parte de um empreendimento mais amplo, que é a construção de uma geoweb que ainda está em seus estágios iniciais, assim como a internet estava em meados da década de 1990. A internet acabou com muitas restrições geográficas, possibilitando o intercâmbio entre pessoas com interesses comuns, independentemente de suas localizações. Mesmo assim, a ausência de um lugar fixo elimina algumas das características mais úteis da informação, o que agora está atraindo uma atenção renovada.

No momento, a agitação mais febril concentra-se na combinação dos mapas virtuais com outras fontes de dados em mash-ups (o resultado da combinação de conteúdos de mais de uma fonte). Um dos primeiros exemplos, o housingmaps.com, criado em 2005, combina a relação de apartamentos de San Francisco da Craiglist.org com o Google Maps. Desde então, os mash-ups tornaram-se um lugar-comum - o Google diz que seus mapas são usados em mais de 4 milhões deles. Em abril, a companhia acrescentou características ao Google Maps para torná-lo mais fácil de criar mash-ups. A Microsoft trabalha em uma ferramenta parecida. Outro site, o platial.com, fornece gratuitamente ferramentas de mash-ups para autores de blogs, os diários virtuais da internet, o que já deu origem a um novo gênero de auto-absorção: a autobiogeografia.

A geoweb tem um apelo óbvio aos que trabalham no ramo imobiliário. O Zillow.com mistura o Virtual Earth da Microsoft com outros dados para criar mapas dos preços de residências nos Estados Unidos. Mas o setor imobiliário é só o começo. No gasbuddy.com, os visitantes podem mapear os preços locais da gasolina para planejar o abastecimento de seus automóveis. O ExploreOurPla.net agrupa milhares de fontes de imagens e dados que permitem aos usuários investigar as mudanças no clima.

Esses exemplos ilustram a arquitetura emergente da geoweb: dados, como informações sobre congestionamentos de trânsito ou tremores sísmicos, são hospedados separadamente das imagens e dos modelos do geobrowser, que agrupa, combina e exibe as informações de novas maneiras. O site GeoCommons.com hospeda dados que vão de taxas de criminalidade a estatísticas sobre melanomas, que podem ser combinadas para criar "mapas de calor" codificados por cores de coisas intangíveis como "estar na moda". Visitantes do Heywhatsthat.com podem gerar um diagrama da vista de qualquer ponto elevado para ver os nomes dos picos das montanhas visíveis.

Aqui os neogeógrafos, como são conhecidos os entusiastas do mash-up, entram no terreno dos "sistemas de informações geográficas" (GIS, na sigla em inglês) - as sofisticadas ferramentas de software usadas por governos e empresas para analisar dados espaciais. Em comparação, os geobrowsers ainda são bem primitivos, mas seu uso é muito mais fácil. De sua parte, os GIS lidam com infra-estruturas importantes, e assim seus dados tendem a ser de qualidade impecável. Jack Dangermond, fundador da Esri, uma empresa de capital fechado que domina o mercado de GIS, diz que o interesse estimulado pela geoweb está ajudando os negócios a cresceram 20% neste ano. Ron Lake, da Galdos Systems, uma empresa especializada na integração de geodados relacionados a cidadãos, diz que os geobrowsers estão levando a um esforço por um melhor acesso da população a esse tipo de dados.

-------------------------------------------------------------------------------- Companhias como o Google e a Microsoft estão montando suas próprias versões de mundos digitais --------------------------------------------------------------------------------

Quando as habilidades analíticas e a qualidade dos dados dos GIS são combinados com a visualização e a destreza das redes, eficiências surpreendentes aparecem. No ano passado, a consultoria Waterstone montou o geodata para 13 bases da Força Aérea dos EUA e os agrupou em uma versão modificada do geobrowser World Wind, da Nasa. Isso torna possível caminhar por um modelo em três dimensões de cada base e evocar múltiplas camadas de dados.

Um gerente de projetos pode ter um vídeo ao vivo do local de uma construção e identificar as empreiteiras e seus veículos. Um projetista pode avaliar os efeitos da proposta de construção de um edifício sobre a visibilidade em uma via pública. E um engenheiro ambiental, ao mesmo tempo em que vê o mapa de um terreno contaminado pode averiguar um período de 45 anos de documentos associados ao local. Carla Johnson, presidente da Waterstone, diz que o projeto custa menos de US$ 1 milhão e deverá permitir à Força Aérea economizar US$ 5 milhões por ano ao acelerar as tomadas de decisões.

Como qualquer tecnologia, a geoweb tem usos bons e ruins. Quando os geobrowsers permitiram o acesso fácil às imagens feitas por satélites - algo antes só disponível às agências de contra-espionagem -, muitos observadores passaram a temer que terroristas pudessem usar essas imagens para planejar atentados. O Google Earth parece ter sido usado desta maneira por insurgentes iraquianos no planejamento do ataque a uma base britânica na cidade de Basra, na qual prédios e veículos podem ser vistos claramente. Depois que isso veio à tona, em janeiro, as imagens da área em questão foram substituídas por imagens de 2002, anteriores à construção da base.

Neste verão americano, um membro da Assembléia do Estado de Nova York pediu ao Google que oculte imagens depois que geobrowsers foram usados por conspiradores em uma tentativa frustrada de atentado a um dos aeroportos de cidade. Mesmo assim Jones diz que o Google foi procurada formalmente por governos a esse respeito apenas três vezes (incluindo uma vez pela Índia e outra por um país europeu não-revelado), e que em cada um dos casos a questão foi resolvida sem a necessidade de mudanças nas imagens do Google Earth.

Embora algumas construções e áreas sejam desfocadas por razões de segurança, o Google diz que isso é feito pelas empresas das quais ela licencia as imagens. A Microsoft afirma que desfoca fotografias em resposta a "pedidos legítimos do governo e de agências". Normalmente, porém, as imagens datam de períodos que variam entre seis meses e três anos antes, o que limita seu uso para fins táticos; além disso, imagens aéreas e de satélite estão disponíveis em muitas outras fontes, há já algum tempo. Portanto, em certos aspectos, os geobrowsers não têm possibilitado nada que já não era possível anteriormente - eles apenas tornaram o acesso a essas imagens muito mais barato e fácil.

"A facilidade de acesso altera o debate", diz Hanke. O Google insiste que leva as preocupações com segurança muito a sério, e afirma que a posição oficial do governo americano é de que os benefícios da ampla oferta das imagens por satélite são maiores que seus riscos. De fato, algumas autoridades estão adotando a exposição. As ilhas Canárias doaram imagens de alta resolução para o Google, na esperança de que os visitantes virtuais se transformem em turistas reais; já a cidade de Berlim já tornou disponíveis ao Google Earth modelos digitais detalhados de sua geografia.

Para os governos que estão acostumados a esconder coisas de satélites espiões de outros países, o advento dos geobrowsers não traz muitas mudanças. Pessoas comuns podem agora acessar imagens de submarinos nucleares chineses pelo Google Earth, mas agências de contra-espionagem de todas as partes do mundo já têm acesso a imagens de satélite muito mais detalhadas há anos. E o fato de os submarinos poderem ser vistos significa que a China não está tentando esconder sua existência.

Mesmo assim, as forças armadas acham a geoweb útil. Os militares americanos são grandes usuários do World Wind e da versão empresarial do Google Earth. E alguns governos têm motivos para preocupação: o do Sudão, por exemplo, sem dúvida preferiria que o Holocaust Memorial Museum dos Estados Unidos não desse destaque aos vilarejos destruídos em Darfur através de uma sobreposição no Google Earth.

Perto de casa, a geoweb acaba tendo implicações na privacidade pessoal, além da geopolítica. A opção Street View (vista de ruas) do Google, lançada em maio, permite aos usuários do Google Maps se movimentarem, no nível do chão, pelas ruas de várias cidades americanas, o que dá aos cidadãos um gostinho de vigilância. Todas as imagens são de ruas públicas, ainda que de maneira geral elas desafiem as noções de privacidade geralmente aceitas - especialmente para aqueles pegos fazendo algo impróprio. Pouco depois que a opção foi lançada, usuários descobriam um carro sendo multado pela polícia de Miami, um homem pulando um portão fechado em San Francisco e outro homem entrando em uma sex-shop.

"Quando a cobertura for total e estiver em toda parte, haverá um grande problema", diz Lee Tien, um advogado da Electronic Frontier Foundation, um grupo de defesa das liberdades civis na internet. As imagens dos satélites não são detalhadas o suficiente para permitir que pessoas ou veículos sejam identificados, mas rostos e placas de automóveis podem ser vistos na Street View do Google. Há poucos precedentes legais. Em 2003, a cantora Barbra Streisand entrou com uma ação na justiça para manter sua propriedade em Malibu fora de um banco de imagens da costa da Califórnia. Ela perdeu. Embora os astros e estrelas do cinema sejam os mais perseguidos - vários sites fornecem links de geobrowsers para as residências de celebridades -, é fácil imaginar anotações inocentes se transformando em "armas" poderosas. Os abrigos para mulheres vítimas de agressões, por exemplo, sempre preferem que suas localizações não sejam muito conhecidas.

Jones, do Google, diz acreditar que os benefícios são grandes o suficiente para superar essas preocupações. "Acho que sempre existe uma barreira social a tudo que é novo", diz ele. A disponibilidade de informações úteis vai sobrepujar as preocupações com a vigilância e a perda de privacidade, afirma. Cinco ou seis anos atrás, observa Jones, as pessoas se preocupavam com a disseminação dos celulares com câmeras. Mas, agora, "todos supõem que todo mundo tem uma câmera em seu celular - não é nada demais." Ele diz que a lição aprendida com tecnologias anteriores é que "todos ficamos satisfeitos em tolerar coisas que antes eram consideradas intoleráveis."

De fato, todas as características da internet - boas e más - eventualmente ganharão novas dimensões na geoweb. Hackers e espiões vão se esgueirar por ela. Ela será povoada por avatares (representações gráficas de pessoas reais) , à medida em que o (site de simulação) Second Life tornar-se a vida principal de algumas pessoas. As possibilidades mal-intencionadas também são sérias: vírus direcionados, geohacking e, o pior de tudo, geospam.

Apesar das preocupações, o potencial da geoweb não está perdido para os investidores. Desde o começo do ano passado, mais de 20 empresas geoespaciais já foram alvos de fusões e aquisições, com Google, Microsoft e Esri entre os compradores. Mas ainda não é a hora de declarar o alvorecer da Web 3.0. Por um motivo: os geobrowsers de consumo não dão dinheiro. Tao, da Microsoft, diz que por enquanto a receita está vindo da propaganda, até que haja massa crítica suficiente para possibilitar as transações localizadas. O Google, como lhe é peculiar, está investindo primeiro para se preocupar com as receitas mais tarde.

Um obstáculo mais imediato está prestes a ser superado. Recentemente, o Google submeteu o KML, o protocolo que descreve como os objetos são colocados no Google Earth, ao Open Geospacial Consortium (OGC), um órgão padronizador. Isso permitirá a outras empresas apoiar o protocolo. O GML, um protocolo desenvolvido pelo OGC para codificar modelos de informações espaciais, foi formalmente adotado como padrão internacional este ano. Os padrões para geodados dinâmicos, o compartilhamento de modelos em três dimensões de prédios e os geodados de redes de sensores deverão estar implementados até o ano que vem. Tudo isso garantirá a interoperabilidade e fará pelos geodados o que a internet fez por outras formas de dados, segundo afirma Carl Reed, principal tecnólogo do OGC.

Ao mesmo tempo, a incorporação da tecnologia de posicionamento de satélites em telefones celulares e automóveis poderá abrir as comportas. Quando isso estiver disponível, dar um giro pelo bairro poderá ser equivalente a navegar e gerar conteúdo sem fazer nada, conforme já foi demonstrado por uma companhia chamada Socialight. Seu serviço permite aos usuários de celulares fixar anotações num determinado lugar, para que elas sejam lidas pelas pessoas que chegam depois. Indo mais adiante, o resultado poderá acabar sendo um tipo de percepção extra-sensorial das informações, anotações e capacidade de análise no mundo real. "Quando isso acontecer", diz Jones, "o mapa será um pequeno portal para a própria vida." A única coisa que poderá segurar isso, acredita ele, é o ritmo de adaptação da sociedade. (Tradução de Mário Zamarian)