Título: Panos para mangas numerosas
Autor: Klein, Cristian
Fonte: Valor Econômico, 21/09/2007, Eu, p. 4

Ruy Baron / Valor A distorção da representação dos estados na Câmara é um dos problemas mais antigos e notórios, mas não mobiliza vontades: é praticamente uma bandeira paulista Depois de anos de espera e muitos debates que alvoroçaram a Câmara, em junho, a reforma política, ou melhor, uma de suas possíveis versões, subiu no telhado. Com a derrota da lista fechada (pela qual os eleitores brasileiros passariam a votar só em partidos), perderam fôlego os outros pontos da proposta, entre os quais o financiamento exclusivamente público para as campanhas e a permissão de coligações partidárias apenas nas eleições majoritárias. O polêmico projeto - que tinha à frente o deputado Ronaldo Caiado, seu partido, o DEM, e líderes petistas - morreu no nascedouro. Mas o assunto não foi enterrado. Os deputados Miro Teixeira (PDT-RJ) e Paulo Renato Souza (PSDB-SP), por exemplo, já apresentaram projetos para revigorar a reforma política, por meio de plebiscito. O PT, em seu congresso nacional realizado no início deste mês, decidiu iniciar campanha pela instalação de uma assembléia constituinte, voltada especificamente para o tema. Ou seja, a chamada "mãe de todas as reformas" continua viva, ainda que não ande em ritmo dos mais entusiasmados. Mas, viva para quê?

Sob a expressão reforma política cabem tantas idéias e bandeiras quantas se possa imaginar. Sejam demandas por mecanismos de democracia direta ( plebiscitos e referendos), pela maior presença das mulheres na vida pública, pelo direito de se revogarem mandatos (o "recall" político), pela extinção do Senado (defendida pelo PT) ou pela introdução do parlamentarismo (idéia rejeitada, há 14 anos, em plebiscito, e que Fernando Collor, ex-presidente da República afastado e agora senador licenciado, quer reacender).

Leo Pinheiro / Valor Argelina Figueiredo acha que emendas individuais são úteis, porque ajudam o governo a conhecer as necessidades da população Alguns temas são mais populares do que outros, chamam a atenção dos cidadãos, da mídia, dos estudiosos ou da classe política. O que não garante, porém, que entrem na lista de prioridades. O recente e frustrado projeto, por exemplo, foi fruto do esforço da Comissão Especial de Reforma Política, instituída em 2003, para analisar várias sugestões apresentadas individualmente ao longo dos anos na Câmara e redigir um pacote unificado sobre o assunto. No entanto, deixaram-se de fora pelo menos cinco temas freqüentes no debate sobre a reforma, associados a determinados atores: o voto facultativo (eleitor), o fim da reeleição (prefeitos, governadores e presidente da República), o antigo problema da desproporção entre o tamanho da população e o da bancada dos estados (Câmara dos Deputados), o fim dos suplentes "biônicos" (Senado) e a extinção das emendas parlamentares (ambas as casas legislativas do Congresso).

O fim dos suplentes sem voto talvez seja a proposta que vem obtendo mais apoio, por tentar combater uma notória anomalia da democracia representativa brasileira. De acordo com a legislação eleitoral, as chapas ao Senado são formadas por um candidato titular e dois suplentes. Atualmente, das 81 cadeiras da casa, 13 são ocupadas (interina ou definitivamente) não por quem ganhou a eleição, mas por substitutos indicados. O problema saltou mais aos olhos quando, recentemente, alguns desses suplentes passaram a exercer posições de destaque, por exemplo, na comissão de ética, responsável por recomendar ou não a cassação do presidente da casa, Renan Calheiros. Sem um mandato conquistado com o apoio popular, os substitutos têm sua força, independência e legitimidade questionadas. É o caso de Sibá Machado (PT-AC), que renunciou à presidência da comissão de ética, e criticou o fato de receber um tratamento de senador de segunda classe. Ex-sindicalista, que fez carreira dentro do PT, Machado substitui Marina Silva, nomeada ministra do Meio Ambiente no início do governo Lula. Ele jamais venceu uma disputa para cargo público eletivo, assim como cinco colegas do Senado, segundo levantamento realizado para esta reportagem (ver quadro). Ou seja, quase metade dos atuais senadores suplentes nunca se elegeu sequer vereador.

Lula Marques / Folha Imagem Sibá Machado, ex-sindicalista, fez carreira dentro do PT: caso exemplar de parlamentar que jamais recebeu um único voto, como outros cinco que estão no Senado Outra crítica recorrente é que a função de suplente é usada em acordos entre candidatos ou partidos coligados para dividir o mandato com duração de oito anos. Ou é oferecida para empresários (financiadores de campanha) e para parentes. Entre os 13 atuais senadores que assumiram como suplentes, três têm relação de parentesco com o titular: Euclydes Mello, primo de Fernando Collor; João Tenório, cunhado de Teotônio Vilela Filho; e Antônio Carlos Júnior, filho de Antonio Carlos Magalhães. Há quem diga que o suplente se assemelha aos ocupantes dos cargos de vice-prefeito, vice-governador ou vice-presidente da República, que também não recebem votos. Mas é inegável que os vices têm visibilidade muito maior durante as campanhas eleitorais e, logo, mais legitimidade, ainda que transitória. Quem não se lembra, na última disputa para a prefeitura de São Paulo, em 2004, da candidata à reeleição, Marta Suplicy, alertando, insistentemente, que quem votasse no concorrente José Serra estaria elegendo, na esteira, o vice Gilberto Kassab?

O fim do exercício do mandato de senador por suplentes sem voto, apesar de esbarrar em interesses da elite política e econômica, tem sido alvo de vários projetos no Congresso. Uma possibilidade seria a de que os partidos ou coligações lançassem três candidatos (sendo eleito o mais votado, os outros dois se tornariam suplentes). Essa alternativa, contudo, tenderia a estimular a disputa intrapartidária e os gastos de campanha, já altos numa eleição majoritária. Outra opção seria que os candidatos mais votados depois do senador eleito fossem os suplentes; mas a vaga aberta se destinaria a um dos candidatos derrotados, filiado a um partido adversário. Para superar esse problema, há uma proposta do senador Eduardo Azeredo (PSDB-MG), pela qual o suplente seria o deputado federal mais votado do partido ou da coligação que também elegeu o senador - o que tem o inconveniente de misturar as eleições e os papéis dos legisladores da Câmara e do Senado. Nos Estados Unidos, quando há vacância, a regra manda que novas eleições sejam convocadas (o que tem a desvantagem de aumentar os gastos com campanhas), mas a legislação permite que as assembléias estaduais dêem ao governador o poder de nomear um substituto provisório, até que as eleições especiais sejam realizadas (o que não resolve o problema de legitimidade).

Para o cientista político Charles Pessanha, do Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (Iuperj), a melhor saída para o Brasil seria criar uma eleição para suplente. Cada candidato a senador seria registrado com vários candidatos a suplentes, que concorreriam para ser o substituto do titular, caso este se eleja. Além disso, se deveria proibir a nomeação de senadores para cargos do Executivo, razão da maioria dos afastamentos, entende Pessanha.

De fato, nove dos atuais 13 senadores suplentes ocupam vagas deixadas em aberto por titulares que assumiram postos nos governos municipal, estadual ou federal. Outros dois chegaram ao Congresso por decorrência da morte do senador eleito - possibilidade de vacância que seria reduzida com a redução do mandato de oito para quatro anos, mudança também defendida por Pessanha.

Enquanto o problema dos suplentes provoca divergências em torno de qual seria a melhor solução, e nem tanto em torno da necessidade de mudança, uma outra questão, que envolve a participação política, é colocada de modo inverso. A sugestão de reforma é simples e única: introduzir o voto facultativo. O debate sobre o diagnóstico, no entanto, é extremamente controverso, reunindo bons argumentos a favor e contra. Discussões sobre o voto obrigatório, instituído no Brasil em 1934, e o voto facultativo são norteadas, geralmente, por razões teóricas e de princípios, de um lado, e, de outro, por razões pragmáticas, que levam em conta os efeitos sobre um determinado sistema político.

Argumentos do primeiro tipo defendem, por exemplo, que, se o voto é um direito, não poderia, por definição, ser obrigatório. Para o cientista político Cícero Araujo, da Universidade de São Paulo (USP), contudo, essa é a versão mais vulgar de uma razão baseada em princípios, pois o direito ao voto não pode ser comparado a um direito individual, a um título de propriedade. Essa linha de pensamento encontra apoio no filósofo e economista inglês John Stuart Mill (1806-1873), que questionava: "Se [o voto] é um direito, se pertence ao eleitor, com que base poderíamos culpá-lo por vendê-lo?". Para Araújo, o melhor argumento teórico pelo voto facultativo é o que se funda na idéia de uma motivação interna, republicana, de um dever moral do cidadão. "O dever teria de ser mais moral do que legal. O problema da obrigatoriedade é que superficializa e desconsidera a qualidade do voto. O cidadão precisa estar imbuído da vontade de votar, de querer fazer a diferença."

Araujo também lembra que há os argumentos práticos e, aqui, o voto facultativo tende a levar desvantagem. O principal risco do fim da obrigatoriedade seria o aumento da exclusão social de grupos marginalizados, com menos renda e escolaridade, que tenderiam a participar menos das eleições. É o que ocorre com a população negra dos Estados Unidos, vítima de um efeito distributivo negativo, pois, segundo pesquisas, os governantes americanos tendem a dar menos atenção aos segmentos da sociedade com menor taxa de comparecimento eleitoral.

"Embora o conteúdo da defesa do voto facultativo tenha um bom argumento republicano, meu coração está mais inclinado para o voto obrigatório", diz Araujo. Além do Brasil, outros países também adotam a obrigatoriedade, como Itália, Austrália e Bélgica.

Em contraste com essa abordagem sobre a participação eleitoral, baseada em estudos e princípios, o tratamento dado à questão da reeleição para os cargos executivos no Brasil geralmente ganha conformação casuística. Raramente o tema vem à tona sob argumentos sólidos e chega ao debate carregado de interesses político-partidários, quase sempre dependendo da posição dos atores políticos, se estão na situação ou na oposição. A recondução dos ocupantes de cargos majoritários - prefeito, governador e presidente da República - é permitida desde as eleições de 1998. Entre as vantagens do instituto da reeleição está a de dar mais tempo para o governante implementar suas políticas públicas. Entre as desvantagens apontadas por seus críticos figuram o abuso da máquina pública para fins eleitorais e o desequilíbrio na disputa em prol do detentor do mandato. A professora Raquel Meneghello, do departamento de ciência política da Universidade de Campinas (Unicamp), discorda desses argumentos.

"Não vejo desvantagem na reeleição. Este não é um dispositivo de escolha obrigatória. O eleitor só reconduz o governante se avalia positivamente as ações do governo. Se o governo for mal avaliado, a alternância tem lugar", diz Raquel. "Tivemos dois presidentes da República (Fernando Henrique Cardoso e Luiz Inácio Lula da Silva) reconduzidos por conta da lógica dessa avaliação, e o sistema democrático representativo só se fortaleceu."

Até por causa de sua recente introdução, há poucos estudos sobre os efeitos da reeleição no sistema político brasileiro. Isso, porém, não impede que os políticos se organizem para defender a extinção da regra. No ano passado, a Comissão de Constituição e Justiça do Senado aprovou uma proposta de emenda constitucional (PEC), de autoria de Sibá Machado, pelo fim da reeleição. Relator da matéria, Tasso Jereissati (PSDB-CE), ironicamente, também foi um dos autores da PEC que instituiu a reeleição em 1997. O senador tentou justificar sua mudança de posição dizendo que, à época, pensava que a reeleição daria mais estabilidade ao país, mas hoje percebeu que ela trouxe mais intranqüilidade.

Os dois últimos pontos que freqüentam as discussões sobre reforma política destoam pelo tempo e pela intensidade com que gravitam na agenda de mudanças. A distorção da representação dos estados na Câmara dos Deputados é um dos problemas mais antigos e patentes do sistema brasileiro, embora não aflore com muita força. Já a questão das emendas parlamentares individuais no orçamento federal entrou recentemente na pauta com uma alta voltagem, depois do escândalo da "máfia dos sanguessugas", que desviava recursos públicos para a compra de ambulâncias.

O tema da representação dos estados tem a ver com o histórico desvio do princípio democrático de "um cidadão, um voto" nas eleições para deputado federal. Enquanto nas eleições para o Senado os 26 estados e o Distrito Federal têm direito a três representantes cada um, independentemente do número de habitantes (pois segue-se aí o princípio da representação do território), as eleições para a Câmara são regidas pelo princípio da população. Cada unidade da federação deveria ter um número de deputados proporcional ao seu número de habitantes. Não é o que ocorre. Como a Constituição estabelece um número mínimo de oito e um máximo de 70 deputados, há estados com reduzida população e alta representação, e outros que são sub-representados, apesar da grande população. São Paulo vem sendo, de longe, o estado mais prejudicado pela distorção. Abriga 21,6% dos cidadãos brasileiros. Por isso, se houvesse uma distribuição proporcional, o estado deveria ter 111 deputados, ou seja, uma bancada com 41 representantes mais do que a atual. Mais cinco estados também teriam um acréscimo de cadeiras, embora bem mais modesto: Bahia (três), Minas Gerais, Bahia, Rio Grande do Sul, Pará e Rio Grande do Norte (uma). Outros cinco estados não ganhariam, nem perderiam: Pernambuco, Ceará, Santa Catarina, Alagoas, Amazonas e Mato Grosso. Os outros 16 estados perderiam posição.

Esses números talvez expliquem, em parte, por que a questão da alocação proporcional de cadeiras entre os estados esbarra num muro: é praticamente uma bandeira paulista. Mesmo os estados que também seriam beneficiados ganhariam muito pouco em comparação ao enorme peso político que seria transferido para São Paulo. O problema, porém, é que a distorção não afeta apenas a dimensão regional, territorial, mas também a partidária: beneficia partidos mais fortes nos estados sobre-representados, a exemplo do DEM, e prejudica as legendas com peso eleitoral nos estados sub-representados, onde poderiam eleger mais deputados, como é o caso do PT.

A extinção das emendas parlamentares individuais é a proposta que ganhou mais relevo recentemente, como medida para moralizar o sistema político. As emendas individuais sempre foram criticadas pela propensão a fazer parte de barganhas entre o governo federal, à procura de votos no Congresso, e parlamentares, em busca de recursos para atender a demandas de seus eleitores. Atualmente, cada parlamentar tem direito a apresentar emendas num valor de até R$ 6 milhões, embora a liberação das verbas não seja impositiva, ficando a critério do Executivo. Daí viria a possibilidade do toma-lá-dá-cá. Mas desde 2006, com o escândalo da "máfia dos sanguessugas", que utilizava recursos para a compra de ambulâncias superfaturadas, as críticas às emendas parlamentares subiram a um novo patamar e a prática passou a ser demonizada pela opinião pública.

A cientista política Argelina Figueiredo, professora do Iuperj, discorda desse diagnóstico e é contra a supressão das emendas. Ela argumenta que as emendas individuais são direcionadas para obras de pequeno porte, como pontes, escolas, postos de saúde, eletrificação, e representam muito pouco da intervenção legislativa no orçamento aprovado, pois as maiores emendas são as de bancada. Ao mesmo tempo, as emendas permitem que os deputados sejam um bom canal de informação para o governo sobre as necessidades da população.

"Os dados sugerem que a idéia de toma-lá-dá-cá generalizado entre governo e parlamentares não corresponde à realidade. Em certos períodos, quando há menos liberação de emendas, o governo continua tendo o mesmo apoio em termos de votos. Sobre o desvio de recursos públicos, sua raiz não está no Congresso. Acredito que a corrupção só tem a ganhar se a participação do Congresso no processo orçamentário for limitada", afirma Argelina.