Título: Fórum Social busca fórmula mais propositiva sem perder diversidade
Autor: Daniela Chiaretti
Fonte: Valor Econômico, 01/02/2005, Política, p. A8

O empresário Oded Grajew abraçou Musa Amer Odeh e disse: "Eu nasci em Tel Aviv, ele, no Líbano. Nos encontramos e nos articulamos aqui. Onde mais poderia acontecer assim? O Fórum Social Mundial é isso". A cena entre um dos coordenadores do evento e o embaixador da Palestina no Brasil aconteceu pouco antes da marcha de ativistas que encerrou os cinco dias de debates e planos de ação do quinto Fórum Social Mundial em Porto Alegre. Mas no encontro, o mais difícil de se achar era um empresário. "Estamos disfarçados", disse José Medeiros, dono de uma empresa de preservação de alimentos de Manaus. O clima pode não ser tão propício ao capital, mas "aos poucos os empresários estão percebendo o valor das iniciativas que ocorrem aqui", acredita Grajew. A próxima edição para fazer com que outro mundo seja possível, o slogan do Fórum, ninguém sabe ainda onde vai acontecer. A certeza é que será descentralizada, e pode ocorrer ao mesmo tempo em algum país da América Latina (a Venezuela é forte candidata), da África (especula-se sobre o Marrocos), da Ásia, da Europa. A coordenação internacional se reunirá no final de março, provavelmente na Holanda, para analisar as propostas e bater o martelo. Tudo é mesmo um pouco fluido no Fórum. Não poderia ser diferente em um evento que se dispõe a contemplar a diversidade e abre democraticamente espaço para todos que tenham alguma opinião a dar, seja sobre o fim dos paraísos fiscais ou a capoeira de Angola. Alguns partilham da opinião de uma de suas estrelas, o escritor José Saramago, e acham que é tempo de deixar as utopias um pouco de lado e partir para a ação. "É um processo em construção, mas muito visionário. Hoje o Fórum não é propositivo, mas sinto que já está corrigindo o rumo", diz Célia Cruz, diretora Brasil-Paraguai da Ashoka, uma associação que apóia empreendedores do setor social. Se a multiplicidade de temas e o crescimento do evento são uma ameaça de fragmentação, ou se a constituição de uma agenda política mais definida pode transformá-lo num partido político ciclópico é conversa para os próximos meses. Ontem era dia de despedida. Os 155 mil participantes voltavam para casa com muitos contatos, novas idéias e dúvidas na cabeça, e um monte de papel na mala. A intenção de mudar o mundo exige sacrifício. As barracas no Acampamento da Juventude pareciam um campo de refugiados a perder de vista, as árvores super disputadas, o calor, implacável. "Muitos ficaram doentes, achamos que pode ter sido a água. Mas tudo bem. Assisti painéis sobre reforma agrária e transgênicos, aprendi muito, conheci muita gente. Fora as festas...", diz Poliana Ávila Silva, 20 anos, estudante de enfermagem e militante do movimento estudantil que veio de Dourados, no Mato Grosso do Sul, direto para o acampamento. Sob um calor constante, o Fórum tem seus momentos de spa-ideológico. Comer é uma corrida de obstáculos nas barracas de economia solidária, dada a multidão - mas a comida é boa, e o preço, justo. Nas tendas de discussões, a temperatura lembrava a ante-sala do inferno antes mesmo do início dos seminários. Fora a logística, que, se contempla o teor inovador do Fórum - tambores para reciclar lixo, forros de papel prensado nas salas das docas, interessantes construções de barro que serviram para debates entusiasmados como o da campanha contra a Coca-Cola - segue uma numeração própria que não tem nada nem de alternativo nem de tradicional, e que saltava da sala F 600 repentinamente para a E 203, e assim sucessivamente, deixando os participantes confusos e exaustos. Quem vencia a gincana, ficava satisfeito. De sandálias havaianas ou do tipo Birkenstorck, alpargatas ou tênis, os participantes desfilaram por quilômetros atrás de temas como a vida no Vietnã 30 anos depois da Guerra, a transposição do rio São Francisco, a articulação Patagônica. Não havia quem não achasse sua turma. Como o painel que revelou a uma platéia atônita a situação dos dalits na Índia, um grupo de 160 milhões de pessoas (quase a população do Brasil), que formam uma subcasta, são considerados sub-humanos e conhecidos como "intocáveis" porque, para muitos hindus, quem toca em um dalit fica impuro. Ou a belíssima exposição de fotos que mostrou a situação dos refugiados no mundo. Para quebrar o gelo das estatísticas e aproximar o drama da mortalidade infantil na África, fizeram uma instalação de areia reproduzindo covas de bebês enfileiradas como as encontradas em Nyala, no Sudão. Neste caleidoscópio de temas sociais, o barco das feministas do Mercosul, uma rede com sede no Uruguai e que engloba quase 2.000 entidades da América Latina, teve muita visibilidade. Elas gastaram US$ 5.500 pelos 5 dias de utilização e lá realizaram debates e passeios pelas águas do Guaíba. "Nossa idéia é combater o fundamentalismo de hoje, que se caracteriza pelo pensamento único. Nosso símbolo é a boca. Rir é algo muito revolucionário", diz a uruguaia Lucy Garrido. "Foi muito lindo, porque aqui entravam pessoas de todos os tipos. Vieram até idosos, encantados com a possibilidade de dar uma volta no barco, e quando percebiam, estavam no meio de um debate com transexuais. Na saída, todos se cumprimentavam. Foi muito lindo." Alguns donos de barracas não estavam tão felizes. "Pagamos R$ 2.400 pelo espaço, e eu tinha R$ 2.000 em mercadoria. Mas como aqui não é fechado, de noite o pessoal chega e olha aí, quebraram minha máquina de café, esvaziaram o tambor de chope", lamentava a dona de uma barraca de salgados e sucos que preferiu não se identificar. Nos dias de Fórum circularam notícias sobre casos de roubo e estupro. Cuidado, sorte, paciência e bom humor são necessários para viver a experiência alternativa. Na sala de imprensa, sempre havia mais gente do que computadores e os softwares, que passam longe dos de Bill Gates, levaram alguns dias para atender às demandas dos usuários. Nas salas de discussões, os tradutores voluntários às vezes tinham personalidade demais, e acrescentavam algo aos discursos originais. Na coletiva de duas estrelas, Saramago e Eduardo Galeano, as portas foram fechadas porque o espaço, muito pequeno para tanto ibope, lotou logo. Do lado de fora, protestos de quem queria participar. "Deixem entrar o povo", gritava um uruguaio. À noite, nos bares da cidade, discutia-se os rumos do "novo mundo possível" à base de caipirinha - talvez, orgânica. É de Galeano uma frase que sintetiza tudo: "O fórum é um verdadeiro milagre em um mundo organizado para eliminar o vínculo, para impedir o encontro. Aqui é possível criar tendências e redes solidárias novas." E arremata: "Para mim, esta espontaneidade maluca é uma alegria".