Título: A conversa entre malucos sobre o terceiro mandato
Autor:
Fonte: Valor Econômico, 31/10/2007, Opinião, p. A14

O fato político pode existir simplesmente, como o produto de processos, interesses e debates - ou pode ter a sua existência construída por meras palavras ou declaração de intenções, inclusive de pessoas que não têm nenhum protagonismo na política institucional. O debate sobre uma eventual articulação de uma eventual mudança constitucional para uma eventual disputa do presidente Lula a um eventual terceiro mandato faz parte da segunda categoria, a dos fatos políticos construídos artificialmente, que surgem como bolhas de sabão, mas que, por serem exaustivamente repercutidos, acabam tendo uma vida maior do que a pressão do ar sobre a bolha de sabão permitiria. O tal do terceiro mandato de Lula acabou virando conversa de maluco.

Fica difícil dizer quem primeiro assoprou a bolha. Provavelmente foi alguém do ex-PFL, que por algum tempo, meses atrás, sustentava a versão de um complô para manter Lula no poder até 2014. O fato, no entanto, é que essa não é uma conversa só de inimigo. Quem manteve a bolha no ar foram os deputados aliados Carlos Willian (PTC-MG) e Devanir Ribeiro (PT-SP). Num caso e em outro, a "suspeita" ou a defesa de uma tese provocam reações que mantêm o assunto no centro do debate como se ele realmente existisse - e acaba existindo pelo simples fato de que há reação a ele. Agora, depois da defesa do terceiro mandato por aliados de segunda linha, o PSDB, que caminhava para uma negociação civilizada com o governo, recua e só falta pedir um documento assinado pelo presidente de que ele não quer e não articula ficar no poder mais tempo do que os dois mandatos a que a atual Constituição lhe dá o direito. Daí o presidente Lula diz que esse assunto não está em discussão - e a oposição reage, dizendo que ele não foi veemente.

Coluna de Raymundo Costa publicada na edição de ontem do Valor ("Conversas do presidente", página A7) colocou um dedo na bolha de sabão, ao relatar o que aconteceu na reunião de Lula com dirigentes do PT na quinta passada - e que provocou, na sexta, a imensa agitação de Devanir Ribeiro em favor da tese do terceiro mandato. Segundo relato dos presentes, Lula teria manifestado o desejo de sair da Presidência em 2010 surfando em popularidade, e acenou para a possibilidade de se recandidatar em 2014. Diz a fonte que o presidente é avesso a mudança de regras durante o jogo. Se é isso que está em questão, não haveria razão para tamanho frisson de Ribeiro, nem do seu colega do PTC. Dispor-se a disputar novo mandato no futuro, sem que isso se configure continuidade pela força ou pelo casuísmo, não é uma intenção messiânica e está longe de equiparar Lula ao "companheiro" Hugo Chávez, da Venezuela.

A oposição, ao dar mais importância à versão do que ao fato, transformou uma declaração de intenções no próprio fato. Mas o petista Devanir Ribeiro e o deputado Carlos Willian confirmam a máxima de que o presidente Lula não precisa de inimigos. Bastam os amigos. Devanir, amigo pessoal do presidente, jogou o balão de ensaio no meio de uma negociação com a oposição para prorrogar a Contribuição Provisória sobre Movimentação Financeira (CPMF) - aliás, num raro momento do governo petista em que o PSDB do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso se dispôs a conversar objetivamente sobre uma matéria de interesse do governo.

O terceiro mandato entrou pela porta do fundo e ofuscou o assunto que vinha pela porta da frente. Pelo que se lê nos jornais, é objetiva a tese de acabar com a reeleição e instituir um mandato único de cinco anos para os cargos executivos. Esse debate passa desapercebido, enquanto se gasta tempo e energia enormes para refutar e rebater uma tese política com pouquíssima chance de emplacar. Pode existir uma razão para que um petista empunhe a bandeira do terceiro mandato de Lula: o PT carece de nomes com peso político suficiente para disputar a eleição presidencial de 2014 e existem chances grandes de ser obrigado a apoiar um nome de outro partido, retirando-se à planície no próximo mandato presidencial. Mas, convenha-se, para que uma idéia assim dê certo, o principal interessado, o presidente Lula, tem que concordar com ela. E, durante os boatos anteriores e nos mais recentes, em nenhum momento o presidente aventou uma possibilidade remota de disputar a sucessão de si próprio.