Título: Alhos e bugalhos
Autor: Luís Paulo Rosenberg
Fonte: Valor Econômico, 01/02/2005, Opinião, p. A10

O governo perpetrou uma "molecagem" na última edição do "Diário Oficial" de 2004 ao incluir, sub-repticiamente, em medida provisória destinada a aliviar a sobrecarga fiscal decorrente da não-correção dos parâmetros do IRPF, uma elevação em 20% do Imposto de Renda incidente sobre pessoas jurídicas que pagam sobre o lucro presumido. É sintomática da perda de tolerância com os abusos da Receita Federal a revolta provocada, detonando um processo de mobilização de opinião pública que poderá culminar com a própria rejeição da medida. Entretanto, se deixarmos um pouco de lado o modo como a mudança foi implementada e concentrarmo-nos no mérito da medida, veremos o desalento com as perspectivas de avanço institucional substituindo a indignação pelo conto-do-vigário aplicado. Realmente, vai ser muito complicado progredirmos na reforma da Previdência, ou na modernização do sistema tributário, se a elite entrar nessa de que, mais uma vez, é a sofrida classe média quem é chamada a pagar a conta. Por quê? Em primeiro lugar, porque se há um movimento desejável na sofisticação da nossa estrutura tributária é justamente o crescimento proporcional do IR no conjunto da arrecadação tributária. É sempre mais eficiente tributar os rendimentos do que as vendas, a renda auferida na pessoa física do que a receita gerada pela pessoa jurídica. E, notem, o Brasil é um dos países com uma das menores participações do imposto de renda no mix da receita tributária - 6% da carga tributária é imposto sobre a renda pessoal e 14% é imposto sobre a renda corporativa. Em média, para os países da OCDE essas participações sobem para 27%, no caso dos impostos sobre a renda pessoal, e 9% sobre o lucro das empresas, sendo que é possível obter exemplos ainda mais eloqüentes, como os Estados Unidos, onde os tributos sobre a renda pessoal respondem por nada menos do que 41% da carga tributária total, e os tributos sobre o lucro corporativo por 9%. Portanto, se queremos nos livrar das CPMFs, Cofins e que tais, devemos estar preparados para pagar mais IR. Vale dizer, colocar mais famílias carregando o piano, criando alíquotas mais elevadas para os mais ricos e até mesmo descartando deduções, porque o cidadão adora reproduzir e multiplicar-se. Em segundo lugar, porque o aumento determinado na base de tributação em regime de lucro presumido é socialmente justo. Há que se recordar que a renda média nesse país de concentração abusiva está entre dois e três salários mínimos. E que a predominância de impostos indiretos no sistema tributário brasileiro, aliada à distribuição de renda altamente desigual, torna o sistema de tributação e benefícios brasileiros inócuo em termos redistributivos.

Como pode a elite clamar por sacrifícios em gastos sociais e infra-estrutura, se não aceita pagar sua justa contribuição no IR?

Ao trazer para cerca de 20% a alíquota efetiva a ser paga por profissionais liberais que faturam através de suas empresas, está-se lidando com os 2% a 3% mais ricos da população. E que, mesmo após a correção da alíquota, continuarão pagando bem menos do que um trabalhador contratado por salário bem menor do que o da nossa vítima. Ou seja, a medida apenas reduz um aleijão altamente regressivo da estrutura tributária e não, como alegam, aumenta arbitrariamente a carga tributária de quem já vinha pagando muito. Depois do aumento, a protegida classe alta atingida pela medida continuará recolhendo imposto de renda às alíquotas mais baixas do mundo para classes de renda equivalentes. De fato, ainda que o imposto de renda sobre pessoa física continue sendo o centro das atenções nas discussões sobre carga tributária no Brasil, ele corresponde a apenas 6% da renda bruta dos 10% mais ricos domicílios do país, que pagam 95% de todo o IRPF arrecadado pelo governo. Vale lembrar que, nos EUA, a alíquota efetiva do IRPF pago pelos 10% mais ricos é 19%, ou seja, três vezes a praticada no Brasil. Aliás, mesmo contando impostos diretos e indiretos, a classe de renda mais alta no Brasil arca com uma carga de impostos não tão alta se comparada com outros países. O mais alto decil de classe de renda no Brasil gasta menos de 30% de sua renda em tributos, enquanto os dados para o Reino Unido, por exemplo, indicam que o mesmo decil passa a gastar em média mais de 36% de sua renda total. Em terceiro lugar, porque se alguém achar que está sendo excessivamente tributado, basta lembrar que o pagamento por lucro presumido nada mais é do que uma liberalidade da Receita Federal. De fato, a carga tributária é definida pelo cálculo do imposto devido através dos preceitos de cálculo do lucro real, que não foram alterados pela medida. É uma opção a critério exclusivo do contribuinte pagar pelo critério de lucro presumido. É óbvio que a "boquinha" do lucro presumido é tão vantajosa que, mesmo após a mudança, poucos concluirão ser aconselhável mudar de procedimento, comprovando que se tratou antes de diminuir vantagens do que gerar injustiças. Nós todos - os que lêem e os que escrevem esse texto - somos os punidos pela medida. Como já vem ensinando há anos o Conselheiro Acácio, ninguém gosta de pagar impostos, mormente para um governo que os desintegra no pagamento de burocratas e de juros. Mas somos nós os mesmos que clamamos por reforma fiscal e da Previdência. Ora, cortar gasto público implica tirar doce da boca de alguém. Como pode a elite clamar por sacrifícios em gastos sociais ou em infra-estrutura, se não aceita pagar a sua justa contribuição no imposto sobre a renda? Pior: reforma da Previdência significa a aplicação de "totó" em pessoas que acreditam ter direitos contra o sistema previdenciário público e que sabemos serem irreais. Como vai ser possível negociar um grande acordo de cancelamentos de direitos absurdos e de isenções injustificadas, se o pico da pirâmide de renda se dispõe à rebeldia tributária quando uma flagrante injustiça é parcialmente corrigida?