Título: Economia traz desafios para Cristina Kirchner
Autor:
Fonte: Valor Econômico, 30/10/2007, Opiniao, p. A14

A história assombra segundos mandatos presidenciais na Argentina - se os titulares conseguem terminar o primeiro. Mais que prova de vitalidade, pode ser uma traumática agonia. Foi assim com Carlos Menem, aplaudido nos primeiros quatro anos e que nos seguintes afundou-se em um mar de corrupção e mergulhou junto o país na mais grave crise de sua história republicana. Néstor Kirchner pode ter driblado os fantasmas da reeleição e com sua sucessora e mulher, Cristina Fernández, as coisas poderão ser diferentes, embora não necessariamente melhores.

A grande vitória de Cristina deve-se ao reconhecimento dos argentinos à coragem e determinação de Kirchner. Ele enfrentou bravamente a crise política e econômica que arrasou o país e recolocou-o de pé, de volta ao crescimento. A Argentina, com sua expansão acelerada dos últimos quatro anos, melhorou todos os indicadores sociais, que haviam desabado para o nível típico de países do Terceiro Mundo. Com tudo contra, e boa parte dos peronistas também, Kirchner conseguiu remendar as instituições argentinas, que estavam em frangalhos depois que Fernando de la Rúa fora escorraçado do poder por uma multidão enfurecida. A volta à normalidade foi um trunfo seu, sem dúvida o maior deles.

Os métodos utilizados para reerguer o país, porém, adquiriram a força do hábito e se transformaram em estilo de governo. A política de Kirchner colocou armadilhas no curto prazo para um presidente que não demonstrou ter visão de longo prazo, a não ser a de pretender se perpetuar no poder. Durante a campanha eleitoral, Cristina também nada disse de importante sobre o futuro, que lhe traz desafios importantes. No plano econômico, Kirchner governou com ultimatos e ameaças, a começar pelo congelamento de preços em supermercados, que já faz água há bom tempo e foi renovado às vésperas das urnas se abrirem, em jogada claramente eleitoral. As tarifas públicas ficaram congeladas por muito tempo, o que levou à deterioração dos serviços e a uma preocupante escassez de energia elétrica e gás, que paralisou boa parte do parque industrial no inverno.

Kirchner preferiu combater falhas de sua política econômica com estatizações e intimidação, enquanto que parte do capital externo que ficou no país após a crise, especialmente no setor de infra-estrutura, resolveu abandonar seus negócios ou reduzir os investimentos. Kirchner subsidiou tarifas, o que estimulou o consumo e elevou gastos públicos, já pressionados por reajustes generosos de salários, aposentadorias e pensões e uma vasta política assistencialista. Os salários privados seguiram na mesma linha - trabalhadores com contrato coletivo tiveram reajustes da ordem de 20% em 2007 e em 2006 - enquanto que os investimentos não acompanharam o ritmo da demanda. A inflação voltou, algo que a manipulação oficial dos índices mal consegue esconder.

A arrogância de Kirchner adiou soluções e agravou os problemas. Cristina terá de domar a inflação em piores condições, reajustando tarifas públicas, elevando juros e segurando os salários. É possível que medidas impopulares sejam tomadas até dezembro, por seu marido, mas esta é apenas uma possibilidade.

No plano político, Kirchner domou o partido peronista, domesticou o Congresso, impondo-lhe leis pela goela abaixo e colocou aliados seus no Judiciário. Impulsivo, Kirchner tornou-se onipotente. Faria seu sucessor de qualquer forma, mas seguiu a velha trilha peronista, do mais deslavado e público uso da máquina estatal, a favor da candidatura de Cristina. Sem contraponto de instituições vigilantes, casos de corrupção começaram a estourar com assiduidade à luz do dia nos últimos meses.

Se os problemas econômicos se agravaram para Cristina, os meios políticos para resolvê-los não. Ela terá maioria na Câmara e no Senado e, como aliados, a esmagadora maioria dos governadores. Seus rivais fora do peronismo não se entendem e continuam fragmentados. Ela encontrará uma oposição importante - foi batida por Elisa Carrió, da Coalizão Cívica na Capital Federal, Buenos Aires, por 37,6% a 23,6% - , mas contida pela desarticulação política. Como no governo de seu marido, Cristina não encontrará grandes obstáculos para fazer as coisas certas - nem as erradas.