Título: Aos poucos, Linux avança sobre o terreno da Microsoft
Autor: Steve Hamm BusinessWeek
Fonte: Valor Econômico, 01/02/2005, Especial, p. A12

Cinco anos atrás, Linus Torvalds enfrentou um motim. Esse finlandês solitário havia assumido a liderança na criação do sistema operacional de computadores Linux, com a ajuda de milhares de programadores voluntários. Esse programa de fonte aberta tornou-se bastante popular para rodar sites de internet durante o boom das pontocom. Mas justamente quando o Linux estava decolando, alguns programadores se rebelaram. A insistência de Torvalds de revisar tudo que entrava no software estava criando um "congestionamento", alertaram eles. Se Torvalds não mudasse seu sistema de trabalho, eles poderiam preparar outro pacote de software - uma ameaça que poderia incapacitar o Linux. "Todo mundo sabia que as coisas estavam desmoronando", lembra-se Larry McVoy, um programador que fez o papel de pacificador. "Alguma coisa precisava ser feita." A crise chegou ao ápice durante uma tensa reunião na casa de McVoy na área de Twin Peaks, em San Francisco. Alguns dos principais colaboradores do Linux conclamaram Torvalds a mudar. Ele acabou cedendo e concordou em delegar mais poderes e usar um programa para automatizar o manuseio do código. Quando o programa ficou pronto, em 2002, Torvalds passou a ser capaz de processar as contribuições cinco vezes mais rápido. A trégua de Twin Peaks é apenas uma das dramáticas mudanças ocorridas nos últimos anos na forma como o Linux é feito e distribuído. O fenômeno que Torvalds desencadeou quando estudante da Universidade de Helsinque, em 1991, era um esforço com pouca estrutura ou organização. Jovens estudantes e iconoclastas movidos a cafeína escreveram a maior parte do código em suas horas de folga, enquanto Torvalds concentrou-se, praticamente sozinho, nas melhorias. Hoje, essa abordagem é uma história singular. Pouco compreendida pelo mundo exterior, a comunidade dos programadores do Linux evoluiu nos últimos anos para algo muito mais maduro, organizado e eficiente. Falando de uma forma direta, o Linux profissionalizou-se. Torvalds agora tem uma equipe de colaboradores próximos, quase todos empregados de companhias do setor de tecnologia, que supervisiona o desenvolvimento dos projetos de alta prioridade. Gigantes de tecnologia como a IBM, Hewlett-Packard e Intel estão agrupadas ao redor de Torvalds, contribuindo com tecnologia, estratégia de marketing e milhares de programadores profissionais. A IBM sozinha tem 600 programadores dedicados ao Linux, número que em 1999 era de dois. Existe até mesmo um conselho de diretores que ajuda a estabelecer prioridades para o desenvolvimento do Linux. O resultado é um Linux muito mais poderoso. O programa está marcando presença em tudo, dos telefones celulares da Motorola e robôs da Mitsubishi, aos servidores da eBay e aos supercomputadores da Nasa que fazem simulações com os ônibus espaciais. Seu crescente poder está mexendo com a indústria tecnológica, desafiando o domínio da Microsoft e oferecendo um novo modelo para a criação de softwares. De fato, o outrora hobby de Torvalds transformou-se na Linux Inc. Não que ela opere como uma corporação tradicional. Longe disso. Não há sede, executivo-chefe ou balanço anual. E ela não é uma única companhia. É, sim, uma cooperativa na qual funcionários de aproximadamente duas dúzias de empresas, juntamente com milhares de indivíduos, trabalham juntos para melhorar o software Linux. As companhias de tecnologia contribuem com o projeto pagando, em grande parte, os salários dos programadores. E, então, ganham dinheiro vendendo produtos e serviços que orbitam em torno do sistema operacional Linux. Elas não cobram pelo Linux em si, uma vez que, sob as regras da cooperativa, o programa está disponível para todos de graça. Como as empresas beneficiam-se com um software gratuito? De várias maneiras. Os distribuidores, incluindo a Red Hat e a Novell, embalam o Linux com manuais de ajuda ao usuário, atualizações regulares e serviços aos clientes, e então cobram assinaturas anuais dos clientes por todos os extras. Essas taxas vão de US$ 35 ao ano, para uma versão básica do Linux, a US$ 1.500 para a versão de ponta para servidores. Esses dólares podem ajudar. A Red Hat, que emprega 200 programadores, deverá ver seus lucros triplicarem para US$ 53 milhões no atual exercício, com um crescimento de 56% na receita para US$ 195 milhões. Esses números são eclipsados pelos ganhos obtidos pelos fabricantes de computadores que vendem PCs e servidores com o Linux pré-instalado. IBM, HP e outras capitalizam sobre sua habilidade na venda de máquinas sem nenhuma despesa prévia com o licenciamento de um sistema operacional, despesa que pode chegar a vários milhares de dólares em algumas versões do Windows e do Unix. Na comunidade Linux, esse tipo de capitalismo é combinado com o compartilhamento da filosofia do movimento da fonte aberta. Dick Porter, um codificador que sempre trabalha à sombra de uma macieira no jardim de casa, em Gales, está na mesma equipe de Jim Stallings, um ex-marine que roda o mundo fazendo negócios para a IBM. O que eles têm em comum é o interesse em tornar o Linux cada vez mais eficiente. O resultado é uma cultura cooperativa e, ao mesmo tempo, Darwiniana. Qualquer empresa ou pessoa é livre para participar da Linux, e aqueles que tiverem mais a oferecer ganham reconhecimento e papéis de destaque. "O Linux é o primeiro ecossistema empresarial natural", diz James F. Moore, da faculdade de direito de Harvard. Para entender o funcionamento da Linux Inc., a "BusinessWeek" realizou uma jornada por esse ecossistema em rápida evolução. A viagem incomum incluiu a participação em reuniões e entrevistas com dezenas de executivos e engenheiros, da Alemanha à China. O que ficou claro com essas entrevistas é que a organização que apóia o Linux amadureceu muito mais do que algumas pessoas de fora imaginam. Embora Torvalds continue em seu centro, ele abriu mão de parte do controle e aceitou muita ajuda, graças a alguns cutucões de programadores individuais, como McVoy, e à influência de algumas gigantes de tecnologia cujos destinos tornaram-se intimamente ligados ao Linux. Um passo importante foi a decisão da IBM, Intel e outras de estabelecer os laboratórios de desenvolvimento de fonte aberta (OSDL, para a sigla em inglês) como uma maneira de acelerar a adoção do Linux. Talvez ainda mais surpreendente tenha sido o fato de que os ataques legais ao Linux no último ano serviram para unir a comunidade. Algumas tensões internas continuam ocorrendo - por exemplo, os defensores do Linux queixam-se de que as diferentes versões do programa acabarão tornando-se incompatíveis umas com as outras. Mesmo assim, um processo movido pela SCO, uma companhia de software que alega que a IBM transferiu propriedade intelectual sua para o Linux, forneceu aos aficionados pelo Linux motivação para coordenar esforços em sua defesa. Companhias de tecnologia abriram seus talões de cheques para pagar por apoio administrativo, incluindo o staff legal que averigua cada ponto do código para ter certeza de que ele poderá suportar uma investigação sobre patente. O processo da SCO contra o Linux deverá ir a julgamento no fim deste ano. Juntando tudo isso, o Linux tornou-se o rival mais forte que a Microsoft já teve. Na área de servidores, a consultoria IDC prevê que a participação de mercado do Linux baseada em vendas unitárias vai aumentar dos atuais 24% para 33% em 2007, em comparação com os 59% do Windows - o que essencialmente manterá a Microsoft com a atual participação de mercado pelos próximos três anos, comprimindo suas margens de lucro. Isso porque, pela primeira vez, o Linux está tirando espaço do Windows, forçando a Microsoft a oferecer descontos para evitar a perda de vendas. Uma pesquisa feita pela consultoria Forrester Research constatou que 52% dos entrevistados estão substituindo os servidores Windows pelos Linux. A IDC, por sua vez, prevê que o mercado total para os equipamentos e software Linux vai saltar dos US$ 11 bilhões do ano passado para US$ 35,7 bilhões até 2008. Em resposta, a Microsoft lançou um contra-ataque ao que ela chama de ameaça número um. A campanha publicitária da gigante dos softwares intitulada "Entenda os Fatos" alega que o Windows é mais seguro e menos dispendioso de se ter do que o Linux. Agora que os distribuidores do Linux estão cobrando mais pelas assinaturas, a Microsoft percebe que pode usar os mesmos argumentos de "custo-benefício" que ajudaram a enterrar velhos rivais como a Netscape Communications. Mas o executivo-chefe da Microsoft, Steve Ballmer, poderá ter dificuldades para convencer os clientes de que o Windows é mais barato que o Linux. Freqüentemente ele não é. Com o Windows, os usuários finais pagam taxas antecipadas que vão de várias centenas de dólares para um PC, a milhares de dólares para um servidor, enquanto não há essa despesa no Linux. Analistas afirmam que o custo total em três anos para um pequeno servidor usado por 30 pessoas, incluindo as taxas de licenciamento, suporte e direitos de upgrades, seria de cerca de US$ 3.500 para o Windows, comparado a US$ 2.400 para uma assinatura da Red Hat. A situação em que a Microsoft pode estar em vantagem é quando uma empresa já usa o Windows. Então, em alguns casos, pode ficar mais barato fazer um upgrade para uma nova versão do programa da Microsoft, ao invés de substituí-lo pelo Linux. A Microsoft não está evitando táticas mais duras para vencer essa batalha. Várias fontes disseram que os executivos da companhia vêm alertando empresas de que elas estão assumindo um risco legal ao usarem o Linux - porque elas estariam infringindo patentes da Microsoft. Especialistas em direito duvidam que a Microsoft venha, de fato, a processar seus próprios clientes, mas os defensores do Linux afirmam que essas "ameaças" são uma tentativa de espalhar dúvidas e incertezas. A Microsoft confirma estar discutindo os riscos legais com clientes, mas nega tentar intimidá-los. O fato de o Linux estar agüentando o ataque da Microsoft sugere que ele poderá tornar-se um modelo para outros na indústria. A Linux tornou-se tão madura que está claro que continuaria a prosperar mesmo sem Torvalds. Andrew Morton, seu braço-direito, já divide as tarefas de liderança e faz todas as aparições públicas. Além disso, os programadores não ficam esperando ordens. As legiões da Linux sabem como o processo de desenvolvimento funciona, e seguem em frente. O processo de desenvolvimento do Linux começa e termina com os programadores. Embora ainda existam alguns voluntários individuais e agências governamentais no processo, mais de 90% das alterações são feitas hoje por funcionários de companhias do setor tecnológico. Algumas dessas pessoas simplesmente submetem códigos, enquanto outras estão encarregadas de melhorar funções específicas. A partir daí, é um ciclo contínuo. Pessoas apresentam idéias e os que fazem a manutenção as melhoram. Então, elas são passadas para Torvalds e Morton. A cada quatro ou seis semanas, Torvalds divulga uma nova versão teste para que milhares de pessoas de todas as partes do mundo possam destrinchá-la em busca de falhas. Ele lança um grande upgrade a cada três anos. Ao contrário das companhias tradicionais de software, não há prazos finais. As novas versões são lançadas quando Torvalds decide que elas estão prontas. De sua parte, Torvalds vem sendo amplamente recompensado pelo seu papel, mas não é nenhum Bill Gates. Os OSDLs pagam a ele um salário de quase US$ 200 mil. Além disso, ele vendeu ações de abertura de capital que recebeu de presente de duas companhias que participam do Linux, que o ajudaram a comprar sua casa e a garantir os estudos de suas filhas. Na sociedade Linux, ninguém venera os ricos e poderosos. Executivos e gerentes de produtos da HP, Intel e Oracle nem tentam pressionar Torvalds e Morton para impor seus interesses. Ao invés disso, elas atuam através de seus engenheiros que, como membros da comunidade da fonte-aberta, apresentam palpites para melhorar o sistema. E as potências de tecnologia aprendem a jogar sob novas regras. Torvalds tem uma satisfação enorme em ver sua cria crescer. "É como um rio. Começa com um pequeno veio e vira uma coisa grande que se move devagar." (Tradução de Mário Zamarian)