Título: Províncias argentinas mais pobres deram vitória a Cristina
Autor: Rocha, Janes
Fonte: Valor Econômico, 30/10/2007, Especial, p. A16

Com o dobro de votos que teve o marido em 2003, Cristina Fernández de Kirchner venceu as eleições presidenciais da Argentina em praticamente todo o país. Mas ela foi particularmente bem nas províncias mais pobres da Argentina, que lhe garantiram os votos necessários para que vencesse já no primeiro turno. É nessas regiões que as políticas sociais e assistencialistas do governo têm mais impacto.

Cristina perdeu apenas na província de Córdoba, onde o vencedor foi o ex-ministro da Economia Roberto Lavagna, na de San Luis, reduto político do candidato Alberto Rodriguez Saá, e também na capital, Buenos Aires, onde ganhou a candidata de centro-esquerda Elisa Carrió, da Coalizão Cívica. O "kirchnerismo" já havia perdido em junho a eleição para prefeito da capital, para o empresário Maurício Macri. Segundo os analistas, trata-se de uma cidade em que tradicionalmente os votos são contra o candidato do governo nacional.

Com exceção de San Luis, Cristina teve votações expressivas (de 50% a 80%) em quase todas as províncias mais pobres do país como Misiones, Salta, Tucumán, Entre Ríos, Formosa e Catamarca.

Nessas regiões, onde a atividade econômica é escassa, os índices de pobreza são os mais elevados da Argentina. É onde os programas sociais implantados pelo governo de Néstor Kirchner fazem mais diferença, a exemplo do que acontece no Nordeste brasileiro, explica o cientista político Sergio Berensztein, da Universidade Torcuato di Tella.

"Além de mais dependentes dos programas oficiais de renda, as populações destas províncias são muito influenciadas pelos setores políticos mais tradicionais do antigo peronismo, que estavam aliados a Kirchner", afirmou Berensztein.

Com praticamente a totalidade das urnas apuradas (96,51%), Cristina tinha 44,91% dos votos, seguida de Carrió, com 22,95%. Em terceiro lugar estava Lavagna, com 16,89%. A votação de Cristina, candidata da Frente para a Vitória, indica que a maioria dos argentinos não votou nela, mas é um percentual suficiente para ganhar em primeiro turno, de acordo com a legislação eleitoral do país. A soma da votação da oposição supera a de Cristina.

Para o analista político Bruno Tomaselli, especializado em pesquisas de opinião, a ampla vitória de Cristina em quase todas as províncias mostrou o avanço do movimento "kirchnerista", fundado pelo presidente Kirchner e que, segundo Tomaselli, representou uma renovação do histórico peronismo, ao qual se alinha a maioria dos políticos argentinos, tanto à esquerda quanto à direita. "Desta vez todo o peronismo se centrou em Cristina, que representa uma visão mais plural, de um país mais moderno", disse o analista. O kirchnerismo se consolida como força hegemônica no Congresso, onde deve ficar com 66% das bancadas na Câmara e no Senado.

Fundado pelo ex-presidente Juan Domingo Perón, que governou a Argentina nos períodos 1946-1951 e de 1973 até sua morte em 1974, o peronismo tem representação institucional no Partido Justicialista, mas que praticamente não existe mais.

Sob intervenção desde 2003 (articulada pelo próprio Kirchner), o Partido Justicialista não apareceu como sigla de nenhum candidato nesta eleição. Mas, segundo Tomaselli, o movimento se transferiu para o "kirchnerismo" ou para a ala de peronistas "não kirchneristas", que tampouco teve sucesso nesta campanha.

Mesmo sendo peronista desde o início de sua carreira política, Cristina evitou referências ao movimento e à sua mais mítica representante feminina, Evita Perón, ao longo da corrida eleitoral. "A sociedade argentina percebe o peronismo como forca transformadora que não precisa mais levar a insígnia do peronismo tradicional", diz Tomaselli, explicando o distanciamento da presidente eleita.

O cientista político Manuel Balan, da Escola de Governo da Universidade do Texas, reforça essa visão. "Mais uma vez ficou demonstrado, até que se prove o contrário, que o peronismo é o único que pode governar a Argentina. É diferente do Brasil, por exemplo, onde um partido novo como o PT provou ser uma alternativa de governo aos antigos partidos tradicionais."

Estes analistas destacam também a desintegração da União Cívica Radical (UCR), que durante 60 anos foi a grande forca opositora no país e que, nesta eleição, também não teve candidato. "Os dois governos radicais [Raúl Alfonsín e Fernando De La Rúa] terminaram mal, e isso é muito forte no imaginário popular", afirmou Balan.

Para Tomaselli, pela vitória na capital e pela quantidade de deputados que conseguiu eleger para a Câmara, a Coalizão Cívica de Elisa Carrió, assim como o ARI, o partido de esquerda que ela fundou e do qual se desligou para concorrer às eleições com uma proposta mais ao centro, saíram das eleições de domingo como o grande potencial de oposição aos Kirchner. Nesta categoria também estaria o direitista PRO, de Mauricio Macri.