Título: Doha faz seis anos e não há nada a comemorar
Autor:
Fonte: Valor Econômico, 16/11/2007, Opinião, p. A8

Há datas que dispensam comemorações e o sexto ano da Rodada Doha da Organização Mundial do Comércio, completos anteontem, é uma delas. Cumprido à risca seu cronograma, ela deveria ter se encerrado em 2005. Não foi e não será por mais um par de anos, em uma hipótese otimista. A própria reunião no Qatar, entre 9 e 14 de novembro de 2001, presidida por Mike Moore, diretor-geral da OMC, foi realizada sem que os 142 países que dela participaram tivessem concordado integralmente sobre os passos a serem dados. Os atentados de 11 de setembro nos EUA apressaram as iniciativas para que os países menos desenvolvidos tivessem melhores chances de progresso e, assim, maiores chances de assegurar regimes democráticos. Parte dessa urgência e desse espírito se perdeu ao longo do tempo.

As boas intenções tropeçaram no arraigado protecionismo da União Européia e dos Estados Unidos. Menos de dois anos depois de aberta, a Rodada Doha tropeçou feio em Cancún, no México, e jamais se levantou depois. A partir daí, seguiu-se impasse atrás de impasse, com propostas ruins que se sucediam a propostas péssimas. O objetivo principal das negociações, que era limpar o terreno agrícola da escandalosa proteção dada pelos países ricos à produção e exportação, não foi atingido, embora em seis anos as propostas, arrancadas sob intensa pressão do G-20, capitaneado pelo Brasil, tenham inegavelmente melhorado. Elas, entretanto, ainda estão a bom caminho de serem aceitáveis, ou justas.

Batizada de rodada do desenvolvimento, Doha pressupunha que os países ricos deveriam realizar a tarefa inacabada das negociações anteriores, da Rodada Uruguai, que consumiu oito anos e terminou com uma onda de liberalização tarifária das indústrias dos países em desenvolvimento, sem a correspondente contrapartida dos bens agrícolas por parte dos desenvolvidos. O pêndulo de Doha deveria se inclinar na direção de maiores concessões agrícolas, sem reciprocidades da mesma magnitude das nações em desenvolvimento em relação às áreas industrial e de serviços. Os interesses protecionistas falaram mais alto.

Quando a rodada estancou, no início do segundo semestre, os pontos principais sobre os quais gravitavam os impasses ainda se referiam à questão agrícola. Os EUA foram instados pelos coordenadores da OMC a reduzir seu subsídios para a faixa dos US$ 13 a US$ 17 bilhões. Queriam US$ 22 bilhões, usaram nos últimos dez anos a média de US$ 15 bilhões, e o G-20 insistia para que estacionassem em US$ 12 bilhões.

No caso da União Européia, que já anunciara em sua política agrícola comum que extinguiria os subsídios às exportações agrícolas em 2013, o eixo da discussão eram as barreiras de acesso a mercado e os subsídios internos à produção agrícola. A UE concordou em chegar aos 70% de redução tarifária, mas entrincheirou-se na defesa de uma lista de produtos sensíveis, que poderiam continuar fortemente protegidos, e em uma oferta insatisfatória de cotas, com as quais anularia as concessões feitas em incentivos à exportação.

UE e EUA, por seu lado, exigiram cortes de 57% a 62% nas tarifas industriais, enquanto que o Brasil aceitaria ir até os 50% e os aliados do G-20 divergiam consideravelmente a respeito. Para piorar as coisas, colocou-se um cavalo de Tróia para os países em desenvolvimento: a proteção especial a alguns produtos toda vez que as importações crescerem muito ou as cotações caírem.

Entre a reunião no Qatar e agora, muitas coisas mudaram - várias para pior. O bloco protecionista europeu ganhou mais estridência e relevo com a eleição do direitista Nicolas Sarkozy. A corrida contra o tempo em Doha para se chegar a um acordo antes que expirasse a autorização a George Bush para negociar acordos comerciais foi perdida. Bush não conseguirá renová-la, já que, na prática, no que depender do Congresso, perdeu a capacidade de governar. Os democratas estão com grandes chances de reconquistar a Casa Branca, e todos os candidatos mais cotados já deixaram claro que não gostam de acordos comerciais. O timing das negociações de Doha foi em grande parte ditado pelos prazos políticos americanos e agora não será diferente. 2008, ano das eleições presidenciais nos EUA, é um ano morto para Doha. O período de hibernação pode terminar, se terminar, só em 2009.