Título: Choque de gestão
Autor: Sergio Vale
Fonte: Valor Econômico, 21/11/2007, Opinião, p. A14

Nas últimas semanas tem se discutido no mercado e no governo, com ampla repercussão na imprensa, a sustentabilidade da política fiscal para os próximos anos. Por trás disso está um discurso enfatizado pelo governo de que o Estado no Brasil, na verdade, não é grande. Entende-se por isso, entre outras coisas, que a quantidade de funcionários públicos disponíveis é pequena e apenas o seu aumento poderia dar início a uma melhoria na gestão pública do país.

Passando ao largo de discussões teóricas, é importante responder à questão empírica básica: quais impactos qualitativos o recente crescimento do setor público tem tido? Mais ainda, o governo tem espaço para aumentar seus gastos nos próximos anos?

Em primeiro lugar, o atual ciclo de crescimento econômico tem garantido e deve garantir para os próximos anos um crescimento importante da receita, expansão essa que se acelerou este ano com a forte recuperação do mercado doméstico. De fato, até dezembro de 2006, a receita real, ajustada pelo IPCA, crescia a 6,6% no acumulado em 12 meses, enquanto em agosto essa taxa chegou a 8,2%. Mas, nos últimos dois anos, as despesas têm crescido consistentemente acima das receitas, e um dos elementos que têm mais se expandido é o item relativo a pessoal e encargos, com expansão acumulada de 11,2% nos 12 meses encerrados em agosto deste ano, contra 9,1% nos 12 meses encerrados em dezembro do ano passado. Esse movimento é relativamente recente, já que o aumento de gastos nessa rubrica ficava ao redor de 4% até meados do ano passado. Ao mesmo tempo, cresceu o item de outros gastos com custeio e capital, onde se encontram os gastos com investimentos e manutenção da máquina pública. Nesse caso, o aumento acumulado já está em 12,2% até o final de agosto, contra 9,6% até o final de 2006.

Segue-se imediatamente a pergunta: essa trajetória é sustentável? Acreditamos que, no curto prazo, dois fatores devem ajudar o governo a manter a sustentabilidade macroeconômica da política fiscal. Primeiro, a evolução positiva do superávit primário dos Estados e municípios, que tem contribuído sobremaneira para a manutenção de um superávit primário consolidado, em detrimento de uma piora gradual do superávit primário do governo central. Não há garantias de que essa tendência continue, mas é evidente a maior responsabilidade fiscal demonstrada pelos principais governos estaduais (São Paulo, Rio de Janeiro, Minas Gerais e Rio Grande do Sul), o que se espera ver ainda para os próximos anos.

-------------------------------------------------------------------------------- Concretamente, não basta aumentar o número de servidores, pois isso não aumentou a eficiência do governo nos últimos anos --------------------------------------------------------------------------------

Um segundo fator que deve ajudar na contabilidade fiscal macro é o menor pagamento de juros. A continuar a atual trajetória, com suposição de manutenção de câmbio em R$/US$ 1,8 até o final de 2010, Selic chegando a 9% no final desse período, e crescimento real do PIB de 4,9% este ano, 4,5% em 2008 e 4% em 2009 e 2010, devemos chegar em 2010 com pagamento de juros em relação ao PIB da ordem de 4%. E isso em detrimento de uma piora esperada do superávit primário consolidado, o que se projeta acontecer por ser 2010 ano eleitoral. Mesmo na expectativa dessa piora, o cenário é de déficit nominal de 0,8% em 2010. Ao mesmo tempo, a dívida líquida/PIB deve chegar neste período aos 37%.

Assim, em termos macroeconômicos estritos, o governo ainda tem fôlego, ajudado pelas esferas não-federais e pela queda do pagamento de juros, o que tende a diminuir o déficit nominal. Ou seja, governos estaduais e municipais e o Banco Central ajudando o lado fiscal. E o executivo federal? Aqui, a tendência é o contrário, o que tem sido responsável direto pela piora do superávit primário recentemente. Essa tendência poderia até ser aceita se redundasse em melhoria efetiva da qualidade do setor público.

Mais ainda, valendo o argumento de que maior número de funcionários significaria melhoria do serviço público, deveríamos ver uma correspondência muito clara entre aumento da quantidade de servidores e a eficiência do setor público. Entretanto, não é o que os dados mostram. Desde 2003 houve um aumento considerável do número de servidores civis e o atual número se aproxima da quantidade observada em 1997, segundo os dados do Boletim Estatístico de Pessoal do governo federal. Mas, ao mesmo tempo, o indicador de eficiência de governo do Banco Mundial mostra uma relação inversa entre a quantidade de funcionários e a eficiência do governo (gráfico). Concretamente, não basta aumentar o número de servidores, pois isso não aumentou a eficiência do governo nos últimos anos. Quando comparamos com os dados de eficiência do Banco Mundial para a América Latina, que sabidamente não tem sido um exemplo de governança pública nos últimos anos, tivemos um desempenho relativamente pior nos últimos quatro anos. É um resultado contrastante com o período 1998 a 2002, em que a melhora da eficiência do setor público ocorreu em detrimento de uma piora significativa do resto da América Latina.

Por essas considerações, fica claro que algumas conquistas importantes dos últimos anos começam a se perder. Primeiro, a deterioração macroeconômica do superávit primário do governo central é evidente e fruto de escolhas políticas muito claras, ou seja, de que o Estado é promotor importante do bem-estar econômico. Nesse sentido, a responsabilidade fiscal de alguns Estados relevantes, além da contribuição da queda do pagamento de juros, são fatores consideráveis e contrapontos na condução geral da política econômica do governo, pois criam espaço para o aumento de gastos. Aumento esse que não é sinônimo de qualidade, necessariamente. A discussão que tem que ser feita não é em termos de quantidade, mas sim de aumentar a qualidade do que já existe, o que passaria, por exemplo, por uma melhora significativa da Escola Nacional de Administração Pública para criar novos parâmetros gerenciais para os gestores públicos.

A consolidação da atual política fiscal põe em risco a sustentabilidade do crescimento de longo prazo da economia e geralmente seus efeitos não são percebidos no curto prazo pela população.

Sergio Vale é economista da MB Associados.