Título: Com ou sem recessão, EUA sentirão o baque
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Fonte: Valor Econômico, 12/12/2007, Especial, p. A16

Nos últimos anos, raramente valeu a pena ser pessimista em relação a economia dos EUA. Vez ou outra, analistas preocupados (incluindo a "The Economist") alertam para problemas quando consumidores endividados e perdulários são forçados a conter gastos.

Até agora, esses problemas foram evitados. O mercado imobiliário residencial atingiu o pico no começo de 2006. Desde então, a construção de novas residências despencou, derrubando ligeiramente o crescimento geral da economia. Mas ela está longe da recessão. Os consumidores mal pestanejaram: seus gastos vêm crescendo à taxa anualizada de 3% em termos reais desde o começo de 2006, mais ou menos o mesmo ritmo registrado no pico do boom do setor imobiliário, em 2004 e 2005.

Ao mesmo tempo, a expansão acelerada dos mercados emergentes aliada à queda do dólar vem proporcionando uma nova proteção à economia americana, que se fortaleceu mesmo com as turbulências registradas nos mercados financeiros no terceiro trimestre. As exportações dispararam a uma taxa anualizada de 16% no terceiro trimestre. Graças em parte ao forte aumento das exportações, os números revisados do PIB, que devem ser anunciados em 29 de novembro, provavelmente mostrarão que a produção industrial americana cresceu a uma taxa anualizada de cerca de 5% entre julho e setembro. Esqueça a recessão: isso está bem acima do ritmo sustentável de crescimento da economia.

Mas as boas notícias podem estar acabando. A retração do mercado imobiliário entrou numa segunda fase, mais perigosa: os problemas no setor se agravam, a queda dos preços se acelera e o efeito riqueza da queda dos preços começa a mudar o comportamento dos consumidores. O problema vai piorar com o grande aperto de crédito, cuja escala apenas começa a ficar clara. E no curto prazo isso será agravado por um repique nos preços do petróleo - que já subiram 25% desde agosto - que é extremo até pelos padrões dos anos recentes. O resultado provavelmente será a primeira retração da economia dos EUA liderada pelo consumo em quase duas décadas.

A maior fonte de problemas é o setor imobiliário. Apesar de quase dois anos de queda no setor, o colapso da bolha imobiliária está longe de acabar - e seu impacto sobre o comportamento do consumidor mal começou. Até agora, a recessão imobiliária vem sendo um estouro para os construtores. O início de construção de novas residências caiu 47% em relação ao pico, e a construção de casas responde hoje por 4,4% do PIB, abaixo do recorde de 6,3% em 2005. Isso é uma grande queda, mas ainda não anormalmente longa ou grave pelos padrões históricos. Nouriel Roubini e Christian Menegatti, da Roubini Global Economics, observam que as sete outras recessões ocorridas no mercado imobiliário residencial desde 1960 duraram em média 32 meses e nelas o início de construção de novas residências sofreu uma queda de 51%.

A julgar pelo grande número de residências não vendidas e pela ritmo com que os compradores estão cancelando contratos (cerca de 50%, segundo algumas construtoras), está claro que os construtores têm mais o que cortar. Richard Berner, do Morgan Stanley, espera uma queda de mais 25%, o que levaria o ritmo do início de construção de novas residências para menos de 1 milhão em 2008, o menor número desde que os registros começaram a ser feitos, em 1959.

Uma "quebra" dos construtores não vai, por si só, arrastar a economia para a recessão. A maioria das crises que o setor da construção teve no pós-guerra foi seguida por uma recessão, mas apenas porque foi desencadeada por políticas monetárias mais apertadas para combater a inflação. As crises no mercado imobiliário eram um sintoma de que uma recessão se aproximava, e não a causa. Desta vez, a fonte do problema está no próprio estouro da bolha imobiliária.

Desde 1997 os preços das residências mais que dobraram em termos reais. Esse aumento reforçou a economia americana de maneiras que vão muito além do boom da construção. Em particular, a alta dos preços residenciais fornece aos consumidores a garantia de que precisam para um aumento enorme na tomada de crédito.

Em relação à sua renda, os consumidores vêm assumindo mais dívidas há décadas, uma vez que o sistema financeiro cada vez mais sofisticado dos EUA possibilita acesso ao crédito a mais pessoas. Mas o ritmo do endividamento subiu dramaticamente. A relação da dívida dos domicílios americanos com a renda disponível está agora acima dos 130%. No começo desta década, era de 100%; no começo da década de 90, era de 80%.

Essa expansão do crédito se tornou possível pelo alta dos preços das residências. Agora que estão caindo, o crédito está mais apertado. As duas mudanças estão apenas começando. Segundo o índice S&P/Case-Shiller, indiscutivelmente o indicador nacional mais exato, os preços das residências caíram cerca de 5% em termos nominais desde seu pico, ou 8% se a inflação for levada em conta. Isso é uma queda muito pequena comparada ao aumento da última década.

E, a julgar pelas moradias não vendidas, ainda não é uma queda suficiente para alinhar a demanda com a oferta. Ao contrário das ações, cujos preços mudam velozmente, os preços das residências são sempre "complicados", uma vez que os proprietários se recusam a admitir que suas casas agora valem menos. Mas os próximos meses devem mostrar um grande aumento na oferta de moradias expropriadas. Mais de 2 milhões de tomadores de empréstimo imobiliário subprime vão se deparar com pagamentos de hipotecas mais altos nos próximos 18 meses, à medida que os juros forem ajustados a novos níveis. Muitos terão suas hipotecas executadas.

Essa constelação vai derrubar os preços. A maioria dos observadores de Wall Street espera uma queda nominal de cerca de 10% no próximo ano ou coisa parecida, mas quedas nos preços de 15% ou mesmo 20% não são mais tidas como possibilidades remotas. Economistas discordam sobre como e em que grau a queda dos preços das moradias vai afetar os gastos do consumidor. Mas estudos empíricos sugerem que as mudanças nos preços das residências têm um impacto maior sobre os gastos do consumidor em países onde os mercados de crédito são mais desenvolvidos, como os EUA.

O estudo mais recente conclui que as mudanças no patrimônio habitacional dos americanos afetam seus gastos mais que as mudanças parecidas em sua saúde financeira, embora esses efeitos demorem mais para aparecer. Uma queda de US$ 100 na riqueza financeira é tradicionalmente associada a uma queda de US$ 3 a US$ 5 nos gastos. Uma queda equivalente no patrimônio habitacional acaba reduzindo, ao que parece, os gastos em algo entre US$ 4 e US$ 9.

Como o patrimônio habitacional dos EUA está avaliado em cerca de US$ 21 trilhões (quase um terço de todos os ativos domésticos), uma queda de 10% nos preços das moradias deixaria uma marca notável no consumo. Se a resposta estivesse no topo das estimativas, por exemplo, os gastos do consumidor cairiam quase dois pontos percentuais. No entanto, estudos econômicos indicam que esse efeito será gradual: a queda dos preços das moradias será um problema simultâneo à queda no consumo, em vez de uma interrupção súbita.

Até agora, essa interrupção vem sendo amenizada pelos fortes ganhos na saúde financeira. Graças aos preços mais altos das ações, o patrimônio geral dos lares americanos ainda continua crescendo sensivelmente. Se o mercado de ações perder força junto com a economia, o efeito riqueza sobre os gastos do consumidor poderá aparecer rapidamente.

Um aperto de crédito geral pioraria muito as coisas. Ninguém ainda tem certeza de qual será o tamanho desse aperto. Isso dependerá do tamanho das perdas decorrentes da bagunça no mercado subprime; quem ficará com essas perdas; até onde os bancos serão forçados a assumir os ativos problemáticos, como os envolvidos nos investimentos estruturados; em quanto eles vão cortar os empréstimos em resposta; e até onde o Federal Reserve (Fed) vai reduzir as taxas de juros de curto prazo para compensar isso.

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Três meses após o primeiro golpe das turbulências financeiras, no terceiro trimestre, os presságios não são bons. Mercados inteiros de ativos securitizados estão se contraindo: o mercado de "commercial papers" lastreados em ativos encolhe há 13 semanas seguidas e é hoje 30% menor que em agosto. Estimativas de perdas com títulos de dívida ligados ao mercado subprime continuam aumentando.

Ben Bernanke, o presidente do Fed, estimou recentemente as perdas com os empréstimos imobiliários ruins em US$ 150 bilhões, bem mais que os US$ 50 bilhões a US$ 100 bilhões que ele esperava no começo do terceiro trimestre. E mesmo esse número pode ser pequeno demais, uma vez que empréstimos subprime avaliados em cerca de US$ 1,3 trilhão foram originados entre 2004 e 2006. O Deutsche Bank já estima as perdas totais ligadas ao mercado subprime em até US$ 400 bilhões, dos quais US$ 130 bilhões ficarão com os bancos. Depreciações dessa escala vão comer até mesmo os colchões de capital mais reforçados.

Por essa medida, os bancos já estão se preparando. Segundo a pesquisa mais recente feita pelo Fed com funcionários de bancos americanos responsáveis por empréstimos, um quarto das instituições elevaram suas exigências para empréstimos ao consumidor (menos para cartões de crédito) em outubro, em comparação a só 10% em julho. Quatro entre cada dez bancos impuseram padrões mais duros para empréstimos imobiliários prime, ante 15% em julho. O ritmo do aperto na concessão de empréstimos imobiliários rivaliza com o do início dos anos 90, quando o setor bancário como um todo era muito mais fraco e menos capitalizado. Mas como padrões mais rígidos são por si só uma resposta à crise imobiliária, podem subestimar a extensão de um aperto de crédito que afete toda a economia.

Assim, muitos americanos terão dificuldade em obter crédito. E, quando isso ocorrer, o terceiro golpe virá: o dos custos mais altos dos combustíveis. Embora tenha recuado na semana passada, o preço referencial do petróleo bruto ainda está acima de US$ 90 o barril, quase 25% maior que em agosto. Esta alta ainda não se refletiu totalmente nos preços da gasolina nos EUA, em grande parte porque as refinarias estavam com margens extraordinariamente elevadas no começo deste ano. O preço médio da gasolina subiu US$ 0,33 o galão (ou 12%) desde meados de agosto. Se o preço do petróleo não cair dramaticamente, a gasolina vai subir. Alguns analistas comentam que, se o petróleo continuar perto dos US$ 100 o barril, o preço da gasolina pode chegar a US$ 4 o galão até o terceiro trimestre de 2008.

Preços mais altos dos combustíveis são o equivalente a um imposto cobrado dos consumidores, reduzindo o volume de dinheiro que eles podem gastar com outras coisas. Jan Hatzius, do Goldman Sachs, calcula que uma alta de um centavo de dólar no preço da gasolina reduz a renda disponível total dos consumidores em cerca de US$ 1,2 bilhão e tende a derrubar os gastos do consumidor em US$ 600 milhões. Ele avalia que nos próximos meses os preços mais altos da gasolina podem reduzir os gastos do consumidor a uma taxa anualizada de 1,2%. No geral, essa queda será menor que a combinação do crédito mais apertado e da queda dos preços das moradias, mas seu impacto vai se concentrar em um período de tempo mais curto.

Um motivo final de preocupação é o mercado de trabalho. O baixo desemprego e o crescimento sólido dos salários vêm sendo um grande fator na recuperação dos consumidores. Com o desemprego em 4,7% e 166.000 novos empregos criados em outubro, essa força parece intacta. Mas uma análise cuidadosa sugere que os números de outubro mascaram uma retração mais ampla. O ritmo de criação líquida de empregos caiu de uma média mensal de 189.000 em 2006 para 118.000 nos últimos três meses. Detalhes da pesquisa sobre o nível de emprego nos domicílios, que pode ser mais acurada quando a economia está em desaceleração, são ainda mais sombrios. Eles mostram um crescimento líquido muito pequeno na criação de empregos em 2007, e uma taxa de desemprego que já subiu três décimos de ponto em relação ao seu ponto mais baixo.

Somando tudo isso, pouco admira que os consumidores estejam se sentindo pressionados. A maior parte dos indicadores de confiança do consumidor vem caindo ultimamente. O índice da Universidade de Michigan está no nível mais baixo em 15 anos, desconsiderando as conseqüências do furacão Katrina. Dados recentes indicam que os gastos já estão perdendo força: o núcleo de vendas no varejo ficou estagnado em outubro.

Os gastos do consumidor, ao redor de 70% do PIB, são de longe a maior determinante da economia. Mas não a única. A possibilidade de uma retração também depende de outros motores da economia reforçarem - ou agirem contra - a fraqueza dos consumidores.

Uma incógnita são os investimentos das empresas. Eles são historicamente voláteis, sempre ajudando a lançar a economia numa retração formal. Na última recessão americana, em 2001, a queda dos investimentos corporativos foi a fonte do problema, à medida que as empresas assimilavam os investimentos excessivos do fim da década de 90. Hoje, o setor corporativo está muito mais preparado. No geral, os balanços das empresas estão saudáveis, e os lucros fortes. Mas, como observa Martin Barnes, da Bank Credit Analyst, as empresas não financeiras domésticas, as que investem mais, não estão se saindo tão bem, com lucros em queda de 9% no primeiro semestre, em relação ao mesmo período de 2006. O investimento corporativo pode não arrastar a economia para o buraco, mas é improvável que proporcione um incentivo.

Essa função está em outro lugar - no comércio exterior. As exportações americanas estão aquecidas enquanto o crescimento das importações diminuiu bastante. Isso reduziu o déficit comercial dos EUA e elevou a produção industrial. As exportações não continuarão crescendo às taxas alucinantes dos últimos meses, mas com o dólar dando poucos sinais de recuperação e com as economias emergentes se mostrando particularmente resistentes, as exportações continuarão sendo um impulso importante. A 12% do PIB, elas podem por enquanto compensar facilmente os problemas advindos da queda do setor da construção.

Juntando tudo isso tem-se uma recessão? Muitos analistas prevêem um crescimento bem menor da economia, mas não uma recessão imediata - usando-se a definição popular de dois trimestres consecutivos de queda de PIB. Observadores de Wall Street estão reduzindo as projeções de alta do PIB para este quarto trimestre, para cerca de 1,5%. A maioria prevê mais uns dois trimestre fracos pela frente. Uns poucos pessimistas de longa data, como Roubini, estão convencidos de que a recessão é inevitável. Mas a maioria dos especialistas avalia que as chances continuam abaixo da casa de 50%.

Ainda assim, a história alerta que não se deve confiar muito nisso. É verdade que os pessimistas tendem a prever recessões com uma freqüência maior do que elas ocorrem, mas também é verdade que os principais especialistas normalmente falham na previsão daquelas que de fato acontecem. Tanto em 1990 como em 2001, analistas de Wall Street previam expansão modesta quando a economia já estava em contração. A história também mostra que a economia americana pode oscilar rapidamente de um forte crescimento à contração. Nos primeiros três meses de 1990, a economia crescia 4,7%, mas em julho estava recessiva. Ajustando-se as previsões de Wall Street ao seu conservadorismo inerente, uma recessão imediata parece bastante plausível.

O ponto em questão é que mesmo que a economia evite tecnicamente uma recessão, a maioria dos americanos terá a impressão que estar em meio a ela - uma vez que a queda vira do consumo. Isso será uma grande mudança. Os gastos do consumidor não caem em um trimestre desde 1991; eles não caem numa base anualizada desde 1980. Os consumidores mal perceberam a última recessão americana - quando os juros baixos e os altos preços das residências permitiram a eles continuar gastando bastante. E o modo como eleitores e políticos reagirão a uma retração do consumo num ano eleitoral é uma incerteza preocupante.

E mais: o aperto sobre o consumidor vai durar mais do que muitos esperam pois ele envolve o desmanche da bolha dos preços dos ativos e os excessos financeiros concomitantes. Assim como os investimentos corporativos permaneceram acanhados durante anos depois da recessão de 2001, os gastos do consumidor serão afetados por mais do que uns poucos meses. No entender de muitos analistas, parece haver poucas razões para esperar que o estouro da bolha imobiliária terá sido superado até o segundo semestre de 2008.

Finalmente, as respostas dos formuladores de política monetária poderão ser mais silenciosas. Em 2001, a economia estava protegida por um grande reforço fiscal, graças a cortes nos impostos e gastos maiores, além de taxas de juros muito menores. Um grande corte nos impostos parece bem improvável agora. Ao mesmo tempo, o dólar fraco e o vigor da economia mundial, que abrandaram a retração, também vão complicar a capacidade de resposta dos bancos centrais. Com base na expectativa de inflação, os juros reais ainda estão acima de 2%.

Os BCs sempre derrubam os juros reais para zero, ou abaixo, em uma retração, o que sugere que há muito espaço para cortes, particularmente porque os problemas no mercado imobiliário significam que os juros mais baixos poderão representar um golpe menos potente. Mas os altos preços do petróleo e o dólar em queda poderão impedir uma resposta agressiva dessas, uma vez que Bernanke preocupa-se com o aumento das expectativas inflacionárias. Em recessão ou não, os EUA têm uma estrada traiçoeira pela frente.