Título: Lacerda propõe triplicar Abin em 5 anos
Autor: Romero , Cristiano
Fonte: Valor Econômico, 22/11/2007, Especial, p. A16

Lacerda quer integrar os serviços de inteligência do governo: "Informação chega o tempo todo, mas é preciso conferir sua veracidade"

O governo vai reestruturar a Agência Brasileira de Inteligência (Abin), integrando os serviços de informação dos vários órgãos públicos, formando especialistas em terrorismo internacional e triplicando, em cinco anos, o número atual de funcionários da agência. As mudanças, que dependem da assinatura de um decreto do presidente Lula, foram elaboradas pelo presidente da agência, Paulo Lacerda, e sua equipe.

Alçado ao cargo graças à reformulação que promoveu na Polícia Federal (PF), Lacerda quer criar o Departamento de Integração do Sistema Brasileiro de Inteligência (Sisbin). A idéia é que cada órgão do governo que possua serviço de inteligência - Forças Armadas e Polícia Federal (PF), por exemplo - passe a ter uma sala, dentro da Abin, com cinco funcionários trabalhando em tempo integral. As salas poderão funcionar como gabinetes de crise. "A cultura dos órgãos da administração pública é a de não trocar informações", comentou Lacerda em entrevista exclusiva ao Valor. "O que queremos é facilitar a disseminação de informações dentro do sistema e desburocratizar."

As mudanças em curso na Abin não prevêem a possibilidade de seus agentes bisbilhotarem a vida de cidadãos, mesmo com autorização judicial. Para Lacerda, isso poderia ser justificável em casos de terrorismo, sabotagem e espionagem em áreas estratégicas, mas, como a lei não autoriza, ele assegurou que a Abin não recorre a mecanismos ilegais de investigação.

O plano de expansão de funcionários será executado em cinco anos. As novas estruturas serão montadas com o pessoal que já trabalha na agência (1.600 funcionários, 1/3 do que tinha em 1990).

A seguir, os principais trechos da entrevista concedida ao Valor:

Valor: O SNI foi extinto pelo governo Collor. A Abin, criada mais tarde, sempre foi vista com desconfiança. O senhor é originário da Polícia Federal. Que serviço de inteligência pretende criar?

Paulo Lacerda: O grande desafio da área da inteligência no Brasil é desmistificar a idéia de espionagem. Eventualmente, há na atividade de inteligência algum tipo de atuação mais reservada, por sua própria natureza, mas por outro lado ela atua também como um setor importante para municiar a alta administração pública, em tempo hábil, de informações estratégicas e necessárias para seu desempenho. Todos os países democráticos do mundo têm na atividade de inteligência um órgão fundamental para auxiliar suas políticas.

Valor: Qual será o foco daqui em diante?

Lacerda: Temos no Brasil o Sisbin, presidido pela Abin e com a participação de 24 órgãos públicos que lidam com inteligência. A concepção doutrinária dele é muito bem elaborada, diz respeito a um esforço de integração dos vários órgãos existentes no governo. No papel, é muito bonito, mas na prática não funciona. É pouco produtivo.

Valor: Por quê?

Lacerda: A cultura dos órgãos da administração pública, de uma maneira geral, é a de não trocar informações, de não se integrarem. Nessa nova estrutura, estamos propondo a criação de um departamento, dentro da Abin, de integração do Sisbin. Queremos unir fisicamente os encarregados da área de inteligência dos vários órgãos públicos. A idéia é criar uma estrutura física com salas destinadas a cada um. Os espaços funcionarão como se fossem uma extensão desses órgãos. Vamos entregar salas prontas, com equipamentos, e elas serão utilizadas por cinco servidores de inteligência de cada instituição. A Abin não terá controle algum sobre esses espaços. Os órgãos, se acharem conveniente, farão um link com seus bancos de dados. Queremos ter um servidor de cada instituição de plantão aqui durante 24 horas, 365 dias por ano. Alguns órgãos não possuem serviço de inteligência, mas também poderão participar do sistema, dado o caráter estratégico de suas atividades e a projeção nacional que possuem.

Valor: Quais?

Lacerda: Incra, Infraero, Embrapa, Ibama, por exemplo. Num momento de dificuldade num aeroporto, num fim de semana, numa madrugada, ou a invasão de uma reserva florestal no Pará, estarão todos os órgãos representados aqui. Eles vão se reunir e aquilo pode virar um gabinete de crise. Podemos treinar pessoal das próprias instituições ou fornecer funcionários da Abin. A depender da demanda, se existir a necessidade de uma pesquisa em banco de dados, todos os órgãos farão uma pesquisa imediata, sem exigir aquela burocracia que existe hoje. Vamos ter salas de reuniões e, assim, a instituição que estiver demandando uma informação pode perfeitamente pedir que os demais o auxiliem naquela pesquisa. Isso ajuda na identificação de personagens, às vezes conhecidos de um órgão, mas não do outro. É um sistema que ajudará o Estado a se antecipar a ações criminosas. Isso se aplica a coisas muito mais sérias do que as que mencionei.

Valor: Quais?

Lacerda: Por exemplo, a informação sobre os ataques do PCC (Primeiro Comando da Capital) em São Paulo, em maio de 2006, chegou primeiro à PF e depois à Polícia Civil paulista, mas os órgãos não se articularam prontamente para combater aquela ação. A informação vazou a partir da escuta de uma ligação de alguém em um presídio, em Recife, direcionada para o interior de São Paulo. A PF recebeu aquilo numa sexta-feira e passou à frente, mas as informações não foram processadas em tempo hábil. Informação chega a todo o tempo, mas é preciso conferir a sua veracidade. O problema é que, se a atividade de conferência ficar a cargo do mesmo órgão que a recebeu, ele pode ter dificuldade de processá-la. Se isso for feito numa mesa com a presença de vários órgãos, a confirmação pode ser feita com maior facilidade. Um exemplo maior aconteceu nos atentados de 11 de setembro de 2001, nos Estados Unidos.

Valor: Como?

Lacerda: Os atentados não aconteceram exclusivamente por falta de informação das autoridades americanas. Agências dos EUA já tinham alguma informação, um acompanhamento daquela possibilidade. O que ficou caracterizado foi uma falta de articulação entre as agências de segurança e um plano imediato de ação, tanto que o governo criou, depois dos atentados, uma agência (o Homeland Security Department) para integrar as demais agências. E, dizem, a nova agência tem dificuldades porque é uma agência controlando outras agências.

Valor: Como o senhor pretende evitar esse problema aqui?

Lacerda: Temos uma proposta bem mais modesta. Ela envolve uma confiança que pode ser gerada pelo relacionamento entre as pessoas e não apenas uma ordem no papel, mandando que um faça isso e o outro faça aquilo. As culturas dos órgãos são diferentes, mas a integração, no mesmo espaço, ao longo do tempo, criará confiança e isso ajudará a diminuir a burocracia. Os órgãos não vão trabalhar para a Abin, que será apenas um facilitador. O departamento de integração do Sisbin será um condomínio em que o síndico será a Abin.

Valor: O senhor pretende integrar os bancos de dados dos vários órgãos?

Lacerda: Não. Definitivamente, não. A Abin não terá acesso algum aos bancos de dados das outras instituições. Os funcionários desses órgãos é que vão acessar as informações dos bancos de dados, na medida em que for necessário. O critério de sigilo das informações será definido por esse funcionário em acordo com suas entidades. Hoje, 24 órgãos participam do Sisbin, mas vamos tentar estender para o maior número de órgãos, com o compromisso da confidencialidade da sua área restrita. O servidor vai continuar se reportando ao seu órgão. Ele estará aqui apenas para a finalidade da integração. Quando houver pedido de informação de outra instituição, ele vai verificar se é pertinente ajudar ou não. Depois que as informações vierem sobre uma determinada demanda, isso poder gerar, dependendo da gravidade do fato, uma articulação da Abin junto ao ministro do Gabinete de Segurança Institucional da presidência, que, aí, poderá se articular com outros ministros e criar um gabinete de crise para discutir ações emergenciais. Para facilitar a chegada de informações, deveremos criar até um número 0800.

Valor: O senhor espera a resistência de alguns órgãos?

Lacerda: Possivelmente, mas já conversamos com cinco e todos ficaram maravilhados.

Valor: Quais?

-------------------------------------------------------------------------------- Todos os países democráticos têm na atividade de inteligência um órgão fundamental para auxiliar suas políticas " --------------------------------------------------------------------------------

Lacerda: Seria deselegante revelar os nomes agora. Não vamos cobrar a participação de nenhum órgão. Vamos começar com os que concordarem.

Valor: O senhor acha que convencerá o Coaf (Conselho de Controle de Atividades Financeiras), órgão do Ministério da Fazenda encarregado de denunciar lavagem de dinheiro e movimentação de recursos de origem duvidosa?

Lacerda: O Coaf trata de informações sigilosas. É uma área mais sensível porque lida com dados confidenciais. Naturalmente, muitos assuntos não poderão ser levados ao grupo.

Valor: Por exemplo?

Lacerda: Uma informação que diga respeito ao sigilo bancário de alguém. Mas o Coaf poderá sinalizar para um dos integrantes do sistema que vale a pena investigar uma determinada situação. A Polícia Federal irá, então, à Justiça e pedirá autorização para investigar. Todos os parceiros poderão ajudar de alguma maneira. Você citou o mais complexo para mim, que é o Coaf, por causa da questão do sigilo. O mesmo diz respeito ao monitoramento de conversas, a questões que envolvem diretamente o tema "privacidade". Isso precisará ter um tratamento muito cauteloso O órgão competente vai lidar com aquilo da maneira que sabe e pode, se for o caso, ir ao Judiciário, abrir um inquérito da PF e, aí, o sistema atuará como elemento de apoio.

Valor: Em 2003, um integrante da Abin - Athos Irigaray - queixou-se de que o trabalho da agência é muito "legalista", o que, segundo ele, cria problemas quanto à velocidade de obtenção de informações. A agência, disse, é ineficiente por agir dentro dos parâmetros legais. O senhor acha que a Abin deve recorrer a métodos ilegais?

Lacerda: Fazer serviço de inteligência num governo autoritário é uma coisa. Num governo democrático, você tem que obedecer às regras do Estado de Direito. Você não pode atuar na área de inteligência cometendo ilegalidades. Tem que observar rigorosamente as disposições legais. Se tivermos aqui todos os órgãos, com suas competências e atribuições, ficará mais fácil trabalhar. Poderemos nos completar.

Valor: A Abin pode ou quer fazer grampo telefônico?

Lacerda: Não pode. Os grandes órgãos de inteligência no mundo têm essa possibilidade de monitoramento e acesso à privacidade das pessoas, dentro do interesse do Estado. Não temos essa autorização e não podemos realizá-la enquanto não tivermos. Essa é uma questão que o Congresso tem que discutir e definir. Havia um projeto do governo no Congresso, mas foi retirado porque é um tema altamente polêmico. Numa discussão paralela a isso, a Secretaria de Estudos Legislativos do Ministério da Justiça estuda a questão do monitoramento telefônico, da privacidade.

Valor: Hoje, a PF só faz grampo com autorização judicial?

Lacerda: Sim. Acho que deverá ser sempre assim. Se algum dia a Abin tiver poder para fazer monitoramento de conversas, deve a agência também ir à Justiça pedir autorização. Acho também que, se houver essa possibilidade, não pode ser numa mesma área que venha competir com órgãos que já tenham expertise.

Valor: Que áreas seriam típicas de investigações da Abin nesse caso?

Lacerda: Em casos de ameaça de terrorismo, de sabotagem e de espionagem em áreas estratégicas, talvez, justifique-se o monitoramento telefônico por parte da Abin. Mas, quero deixar bem claro que sempre com autorização judicial. O foro competente para discutir essa possibilidade é o Congresso.

Valor: As atribuições legais específicas da Abin mudam com a nova agência?

Lacerda: Não. O departamento de integração do Sisbin é apenas uma área da Abin. Temos outras três: os departamentos de Inteligência Estratégica, de Contra-Inteligência e de Contra-Terrorismo.

Valor: O que fará o departamento de inteligência estratégica?

Lacerda: Entre outras coisas, avaliação de risco em geral. Um exemplo: o sistema de energia do país, mesmo o privado, tem alguma vulnerabilidade? Vamos analisar em conjunto com o setor. As questões de meio ambiente, o bioterrorismo e muitas outras. Nós temos aqui o Programa Nacional de Proteção ao Conhecimento. Há informações estratégicas na Petrobras, na Embrapa, em empresas privadas. Nessa descoberta de petróleo, a Petrobras lidou com toda a cautela para que o assunto não vazasse, eles souberam lidar com isso de forma adequada. Da nossa parte, orientamos os vários órgãos da administração a como lidar com informações estratégicas, em como fazer com que elementos estranhos não adentrem as organizações para buscar informações sensíveis, privilegiadas.

Valor: O senhor vê o Brasil como alvo de um possível alvo terrorista?

Lacerda: Não, mas não podemos desconhecer o que se passa no mundo. Temos que ter especialistas que saibam o que está acontecendo no mundo, o passado e a história contemporânea do terrorismo. Essa é outra novidade. Vamos formar especialistas dentro da agência. Isso pode nos ajudar a prevenir ações no Brasil.

Valor: Os americanos sempre alegaram que grupos atuam na Tríplice Fronteira (do Brasil com Argentina e Paraguai, em Foz do Iguaçu), ajudando a financiar o terrorismo. É possível afirmar que isso não existe?

Lacerda: Temos que dizer com conhecimento de causa que o que existe na Tríplice Fronteira é uma movimentação de recursos de descendentes de árabes muçulmanos, que mandam dinheiro para seus países, assim como brasileiros mandam dinheiro dos EUA para Governador Valadares (MG).

Valor: E esse dinheiro pode ou não ser usado para financiar atividades terroristas. É isso?

Lacerda: É. Na soma, dá um valor grande, mas individualmente são valores inexpressivos. O que acho é que temos que dizer isso com conhecimento de causa.

Valor: Não há essa certeza?

Lacerda: Hoje, o que existe são opiniões muito esparsas. A PF tem uma divisão de anti-terrorismo, mas ela fica sozinha com essa atribuição, quando temos uma órgão de inteligência, que pode se somar à PF e ajudar.