Título: Em Angola, onde falta tudo, boom do petróleo atrai novos negócios
Autor: Santos, Chico
Fonte: Valor Econômico, 26/10/2007, Internacional, p. A10

O hotel Palanca Negra, em Luanda, a capital de Angola, tem mais de 50 quartos. Os quartos duplos, muitos deles sem janela, têm duas caminhas de solteiro, estreitas e baixas, bem próximas entre si e distantes cerca de 50 cm da parede em frente, cada uma com sua mesinha de cabeceira. Ao todo não têm mais de 20 metros quadrados cada, incluindo um pequeno banheiro com seu minúsculo box. O quarto individual é metade disto. O hotel cobra US$ 113 por um e US$ 100 por outro. A demanda é grande. Reflexo de uma cidade e um país onde falta quase tudo e que, ao mesmo tempo, experimenta taxas de crescimento exponenciais, 20,6% em 2005, 18,6% em 2006 e alguma coisa nessa faixa este ano, segundo as previsões.

A guerra civil que aniquilou o país terminou em 2002, e a reconstrução entrou na ordem do dia, movida a petrodólares, principalmente. Dos US$ 31,3 bilhões exportados no ano passado, o petróleo respondeu por 96%. Mas isso não quer dizer que Angola seja uma filial do paraíso em território africano. Está muito mais para seu eterno concorrente, impressão que marca imediatamente quem chega a Luanda, com seus de 5 milhões a 9 milhões de habitantes, dependendo de quem faça a conta. As estatísticas são estimadas, pois não há censo no país deste 1970.

O Palanca, cujo nome homenageia o belo e quase extinto antílope que é o símbolo nacional, fica dentro de uma área cercada, chamada cidadela, anexo ao maior estádio de futebol da cidade. Conformando-se com as acomodações, o visitante leva um soco no estômago ao transpor o portão da cidadela, cujo pátio já é um tanto caótico. Na rua em frente, a poeira envolve a tudo e a todos, levantada por um trânsito infernal e alimentada por uma obra de canalização de uma vala tocada por empresa da China. É o futuro ajudando a piorar o presente. Alguns metros à direita e a rua cruza com outra maior e ainda mais confusa: é a avenida Brasil, para os íntimos, porque em Luanda não há placas de rua.

O trânsito louco é dominado por enormes carros do tipo picape 4x4 e por dezenas de vans azuis e brancas. São os "táxis", ou candongas, único arremedo de transporte público da cidade. Táxi mesmo, como se conhece no resto do mundo, não há, a não ser um inoperante serviço por telefone. Ônibus, idem, e é melhor que não haja, porque uma frota de cem veículos desse tipo seria suficiente para provocar um colapso na cidade. Em Luanda, para quem não se dispõe a andar nas entulhadas candongas (e não se vê branco, ou "pula", nos candongas), é imprescindível ter um carro. E com motorista, pois não há vagas para estacionar e também porque só se chega aos lugares por referências. Endereço é uma mera formalidade. E o motorista precisa ser esperto, saber cortar caminho, senão o dia se esvai na pasmaceira do tráfego poeirento.

Cortar caminho quer dizer entrar por lugares sem nenhum vestígio de urbanização, logo atrás das ruas principais, deparando-se com montanhas de lixo e com favelas, aqui conhecidas como "mosseques", espalhadas pelo miolo da cidade. Segundo cálculos da organização não governamental Development Workshop, pelo menos três quartos da população da capital angolana vive nesses mosseques. Vê-se obras por toda parte, a maioria tocada por chineses, que trouxeram mais de US$ 7 bilhões em financiamento e estão trabalhando diretamente para o Gabinete de Reconstrução Nacional (GRN). Há polêmica sobre o aproveitamento desses recursos.

Não é preciso sair das vias principais para ver a marca da pobreza extrema. Dezenas, talvez centenas, de edifícios construídos pelos colonizadores portugueses nos anos 1950 e 60, abandonados às pressas e reocupados pela população local, têm hoje a aparência de favelas verticais, como os velhos conjuntos habitacionais construídos na mesma época no Rio de Janeiro para abrigar as populações removidas das áreas ricas da cidade.

Eles são sujos, cheios de lixo e de restos de esgotos na frente, a fachada caindo aos pedaços. A reportagem do Valor entrou em um desses prédios, um dos mais bem cuidados. Não há elevadores funcionando. Em muitos casos, os prédios tiveram os poços do elevador transformados em lixão. Baratas e detritos (há ratos em muitos deles) dividem o espaço de acesso às escadas, que não têm corrimão em metade dos seis andares.

Transposta uma grade de ferro chega-se à porta de um ótimo e espaçoso apartamento de dois quartos e dependências, uma autêntica cena do filme "Blade Runner". Todas as facilidades modernas estão lá dentro. O aluguel? US$ 50 mil por ano, pagos antecipadamente.

Luanda é a capital da carestia. Pior no mundo, apenas Harare, capital do Zimbábue. Um simples espaguete com molho de carne em local despretensioso pode custar US$ 30. O aluguel de um carro com motorista sai por entre US$ 150 a US$ 200 a diária. Os iniciados conhecem alternativas, mas elas estão sempre indisponíveis.

Na capital angolana, todos são obrigados a ter gerador porque, embora o país seja auto-suficiente em geração de energia elétrica, a rede de distribuição não suporta a carga, e a empresa fornecedora é obrigada a desligar o fornecimento. Todos têm telefone celular. A telefonia fixa é totalmente incipiente.

No sofisticado supermercado Casa dos Frescos, um quilo de tomate sai por 1.004 kwanzas, a moeda oficial. Ao câmbio de Kz$ 75 por dólar, isso quer dizer mais de US$ 13. O dólar também é moeda corrente em Luanda, sendo legal seu uso em transações e depósitos. Uma minivalorização da moeda local feita este ano (de Kz$ 80 para Kz$ 75 por dólar) tem elevado os depósitos em kwanzas.

Mas é possível comprar o tomate nas ruas, de uma zungueira (mulher que, com uma espécie de bacia na cabeça, vende todo tipo de alimento nas ruas) por até Kz$ 200. Mas comprar alimentos nas ruas é um risco. Dizem que andar a pé também, especialmente para brancos, mas em uma experiência de atravessar cerca de quatro quilômetros entre a cidadela e a Mutamba, bairro que abriga o centro comercial e de serviços da cidade, a reportagem não foi molestada.

Difícil é atravessar os cruzamentos, com tráfego permitido em todos os sentidos e, na maioria dos casos, sem qualquer sinalização o simplesmente controlados por guardas vestidos com luvas brancas, os "trânsitos". Meninos e rapazes vendem de tudo na margem do asfalto e nas calçadas onde elas existem. São verdadeiras lojas ambulantes.

A caminhada revelas aspectos chocantes, como uma loja da Lacoste com paletós de mais de US$ 500 na vitrine, ao lado de um prédio semidestruído, habitado, exalando um incrível cheiro de lixo. O comércio sofisticado é raro, mas existe, em convivência íntima com a pobreza, como a loja Andy's, uma espécie de Daslu angolana, bem próxima a um musseque. Foi inaugurada pela primeira dama do país e tem até um autêntico café parisiense anexo.

Os musseques estão por toda parte, com montanhas de lixo onde as crianças brincam. Há planos de remoções. No miolo da cidade, eles tendem a ser expelidos pela enorme atividade imobiliária. Brasileiros que trabalham na capital angolana dizem que quem fica dois meses fora é surpreendido por mudanças.

Um bairro muito bom em uma colina, batizado de Miramar, abriga as embaixadas e belas casas, mas muitas das ruas não são calçadas. Próximo está o palácio presidencial. A fortaleza colonial construída pelos portugueses domina majestática a baía de Luanda. Ali está o museu das forças armadas. E o porto é um destaque. Cheio de navios, ilustra o intenso comércio.

A atividade mais frenética é em Luanda Sul, uma outra cidade que está nascendo a cerca de 20 quilômetros do centro. A Construtora Norberto Odebrecht, a maior das que estão presentes no país, está construindo ali vários condomínios, de casas e de prédios. Um apartamento triplex de quatro quartos, com cobertura e piscina, sai por US$ 2,2 milhões num desses condomínios. A demanda é grande. O aluguel de uma casa em Luanda Sul fica em torno de US$ 20 mil, podendo chegar a US$ 28 mil. Lá fica a mais nova atração luandense, o Shopping Belas, inaugurado este ano e administrado por uma empresa baiana.

Além de poucos muito ricos, a elevação dos custos em Angola é patrocinada pela presença crescente de empresas estrangeiras, atraídas pelas indústrias do petróleo e do diamante e pela crescente demanda por produtos e serviços num país de 15 milhões de habitantes (número também controverso) com um Produto Interno Bruto (PIB) que este ano deve superar US$ 50 bilhões e onde falta quase tudo. É uma atração irresistível, e as pessoas que chegam acabam aprendendo a conviver com a desordem urbana agravada pelas obras de reconstrução. É bom ver o país se transformando, embora analistas, como a diretora do Centro de Estudos e Investigação Científica da Universidade Católica de Angola, Noelma Viegas d'Abreu, comecem a questionar a demora para que o crescimento se traduza em melhoria das condições de vida da população pobre, após cinco anos do final da guerra.