Título: Reinado Kirchner faz argentino perder o interesse na eleição
Autor: Rocha, Janes
Fonte: Valor Econômico, 26/10/2007, Especial, p. A16

Imagine o último dia de uma campanha eleitoral para presidente da República. Por todo o país, as cidades ficam cobertas de cartazes, papeizinhos espalhados por toda parte, carros de som infernizando os ouvidos, cabos eleitorais portando bandeiras e distribuindo "santinhos" em cada esquina - toda aquela confusão e sujeira que os políticos costumam fazer nessa ocasião. Geralmente é o assunto único nos jornais, rádios, TVs, botecos e feiras livres.

Não na Argentina.

Neste domingo, os argentinos vão às urnas para eleger seu próximo presidente do país. Mas, quando se anda pelas ruas da capital, Buenos Aires - a maior e mais importante cidade do país -, quase nada indica que um evento tão importante está para acontecer. Há alguns poucos cartazes, alguns outdoors, misturados às propagandas de roupas, carros e perfumes. Só repara mesmo quem está atento ao tema.

Na TV, uma ou outra publicidade eleitoral de candidatos, principalmente os que estão mais abaixo nas pesquisas de intenção de voto - Roberto Lavagna, Rodriguez Saá e Jorge Sobish. A candidata líder nas sondagens eleitorais, a senadora e primeira-dama Cristina Fernández de Kirchner, tem seu espaço garantido no noticiário normal, movida pelas ações do próprio governo de seu marido, o presidente Néstor Kirchner, que, desde que ela lançou sua candidatura, em julho, usa todos os recursos do Estado para promovê-la.

Segundo as últimas pesquisas, divulgadas no domingo, Cristina - candidata pela Frente para a Vitória, a coalizão de partidos que apóia o presidente Kirchner - está na frente com algo entre 40% e 47% das intenções de voto. Em um segundo lugar, distante, vem a advogada Elisa Carrió, da Coalizão Cívica de partidos de centro esquerda, com 16% a 18%, não chega a 20%.

Esta semana, a última antes da eleição, o assunto fez algum ruído, não muito. "É a eleição mais sem graça que eu já vi", diz o cientista político Diego M. Raus, diretor da licenciatura em Ciência Política e Governo da Universidade Nacional de Lanús, repetindo a frase que mais se ouve em Buenos Aires nos últimos meses.

"A impressão que dá é que se instalou a monarquia na Argentina. A primeira-dama já ganhou, e nós vamos às urnas apenas para coroar a rainha", ironiza o sociólogo Gustavo Adolfo Druetta.

Raus aponta que a apatia dos eleitores argentinos pode ser explicada, em boa medida, pela desarticulação dos partidos políticos tradicionais, processo que teve início há cerca de dez anos, e que afeta não só a Argentina mas toda a América Latina.

"Aqui sempre houve um partido que ganhava [o Justicialista, também conhecido como peronista] e uma oposição muito forte, a União Cívica Radical [UCR], que hoje não tem mais quase nada. O ARI [partido de esquerda fundado por Elisa Carrió] é um desmembramento da UCR, assim como Rodriguez Saá. São grupos políticos que só duram uma eleição, não são partidos", explica Raus.

Em 2001 e 2002, no auge da crise econômica, os partidos políticos acabaram de afundar sob os gritos de "que se vayan todos", um refrão desesperado da população que foi às ruas e derrubou cinco presidentes em um mês ao som de batuques nas panelas.

É justamente essa disposição dos argentinos de "brigar" que torna mais difícil entender a falta de interesse com as eleições de domingo. Muito mais engajados que os brasileiros em movimentos sociais e grupos sindicais, os argentinos estão sempre nas ruas reivindicando alguma coisa. Manifestações e bloqueios das avenidas por enormes grupos de protesto fazem parte da paisagem natural de Buenos Aires. Todos os dias tem pelo menos uma manifestação na cidade.

O país saiu da crise econômica nestes quatro anos de governo de Néstor Kirchner. Mas não saiu da crise política. "A apatia se dá no contexto desta crise que nunca foi superada", afirma o analista Fabian Perechodnik, diretor da Poliarquía Consultores, empresa especializada em sondagens de opinião pública. Perechodnik diz que a falta de uma estrutura partidária dificulta o estabelecimento de um canal de participação popular.

O desinteresse nesta eleição é inédito, afirma Diego Raus. "Em 1983, o ato de encerramento da campanha de [Raúl] Alfonsín juntou 800 mil pessoas no Obelisco. Hoje os candidatos não conseguem reunir cinco mil pessoas", afirma. "Não tem campanha, não tem debate, não tem proposta." Druetta acrescenta: "A verdade é que as pessoas estão com dinheiro no bolso [resultado do crescimento econômico dos últimos quatro anos] e estão mais preocupadas em comprar um carro novo e em viajar, não querem saber de política".

A apatia dos nossos vizinhos chegou ao ponto extremo em que a maioria dos cidadãos fugiu da convocação para trabalhar nas mesas das seções eleitorais, criando um enorme problema para a justiça eleitoral. Os juízes da Junta Nacional Eleitoral divulgaram anteontem que a votação de domingo corre "sério risco" na capital por falta de gente para conduzir as mesas.

Dos 17.751 telegramas enviados a pessoas convocadas para trabalhar nas eleições, 15.249 (85%) voltaram sem resposta. Os convocados não foram encontrados. Outros mil e poucos mandaram justificativas para não participar. Em toda a Província de Buenos Aires (que concentra o maior numero de eleitores do país), dos 57 mil convocados, 15 mil justificaram sua ausência nas mesas.

Em um comunicado de emergência enviado à Suprema Corte, a Junta avisou que, com o numero de notificados que tinha até quarta-feira, poderia constituir apenas 705 das 5.917 mesas eleitorais da capital. E pediu autorização para convocação dos funcionários da Justiça em caráter extraordinário. É claro que ninguém gosta de trabalhar nas eleições e sempre falta pessoal, mas em geral as ausências são facilmente repostas pelos primeiros cidadãos que chegam aos centros de votação e logo são "laçados" para trabalhar. Mas os juízes alertaram que esta estratégia não serve para cobrir mais de 90% dos convocados, que já se sabe não vão comparecer no domingo.