Título: Perigo: minha avó foi à feira e acha que a inflação voltou!
Autor: Kinoshita, Samuel
Fonte: Valor Econômico, 26/10/2007, Opinião, p. A14

Em tempos recentes, um grupo relevante de economistas passou a expressar grande preocupação com a trajetória futura da inflação brasileira. A verbalização de tal apreensão pôde ser evidenciada em seu quase uníssono apelo pela manutenção da taxa de juros em seu patamar atual. De fato, é consenso que os enormes ganhos neste campo, obtidos com o esdrúxulo amálgama de dureza monetária e sanha fiscal, não devem ser desperdiçados. Contudo, será que estamos realmente nos dirigindo a um ponto de guinada no processo inflacionário? Nossa interpretação é que ainda é muito cedo para se afirmar que está ocorrendo uma inflexão na dinâmica do processo. Procuraremos mostrar que os métodos que supostamente evidenciariam o nosso problema inflacionário não são de grande valia na antecipação do mesmo e que, pelo menos até o momento, a usual e benfazeja ansiedade do mercado com possíveis desdobramentos perversos de um nível elevado de atividade se mostra excessiva.

A inquietação dos analistas mencionados anteriormente é advinda, primordialmente, de conclusões obtidas a partir de modelos que se propõem a estimar o potencial de crescimento não-inflacionário de uma economia. Um perigo inerente a esse tipo de abordagem reside na baixa capacidade de se estimar o chamado produto potencial. Ainda que sua utilidade conceitual seja imensa, suas aplicações não obtiveram grande sucesso. Diversos autores reportaram as dificuldades que o uso deste conceito encontra no mundo real. Orphanides e van Norden ("The Reliability of Inflation Forecasts Based on Output Gap Estimates in Real Time", Journal of Money, Credit and Banking, 2005) são leitura obrigatória para quem se interessa pelo assunto. Estes autores mostraram que medidas de produto potencial em tempo real não lograram sucesso em antecipar a inflação. Além disso, como os modelos empregados não são capazes de saber se estamos passando por mudanças estruturais, esses modelos supõem, implicitamente, que os parâmetros que regularam a economia em determinado período se manterão os mesmos no futuro próximo. Dessa maneira, corremos o risco de reviver nosso passado recente inúmeras vezes, já que o limite de nosso crescimento não-inflacionário será meramente produto de manipulações algébricas daquilo que se observou até aquele ponto. É razoável supor que a presente melhora do ambiente econômico, resultado de medidas tanto da administração atual quanto da anterior (exemplos abundam: inflação sob controle, maior acesso ao crédito, estabilidade política, eliminação da vulnerabilidade externa, etc), tenha criado, passo a passo, um país "melhor" que aquele refletido nos modelos econométricos. Os expressivos números de importação e fabricação de máquinas e equipamentos apontam a possibilidade de estarmos subestimando a capacidade dos empreendedores de identificar as mudanças de cenário e de demanda prospectiva. Acreditamos que um exame mais rigoroso das alterações estruturais pelas quais o Brasil passou nos últimos quinze anos deverá servir a dois salutares propósitos: primeiramente, mostrar que o nosso "potencial" é significativamente superior ao que supúnhamos até hoje e, em segundo lugar, incutir nos debates e aspirações da sociedade brasileira a dimensão do ganho de produtividade que obteríamos com as verdadeiras reformas que o país vem adiando.

-------------------------------------------------------------------------------- Economistas do mercado e do BC devem reduzir o peso dos índices de confiança do consumidor nas previsões de inflação --------------------------------------------------------------------------------

Um segundo argumento, que reforçaria a linha de raciocínio negada acima, lembra que, após consecutivos aumentos nos índices de confiança dos consumidores, foi observada uma queda nos mesmos em suas últimas observações. Essa queda seria uma resposta dos consumidores à sua crença de que, em breve, viveremos dias menos tranqüilos no front inflacionário. Ainda que acreditemos que os consumidores tenham essa tremenda habilidade sensorial, deveríamos acreditar no que eles dizem ou no que eles fazem?

Em trabalho desenvolvido para a Idéias Consultoria, constatamos que os índices de confiança do consumidor não apresentaram informação relevante sobre a evolução do consumo brasileiro. Em outras palavras, uma "leitura atenta" dos índices de confiança foi um exercício fútil, quando dispúnhamos do passado da própria série de consumo e de outras variáveis explicativas. Esse resultado não é nada surpreendente. João Marcus Nunes, em seu "O Vôo da Águia", chega a resultado similar para os EUA dos anos noventa, assim como Goh (" Does Consumer Confidence Forecast Consumption Expenditure in New Zealand?", Treasury Working Paper Series from New Zealand Treasury, 2003) reporta a mesma conclusão para a Nova Zelândia.

O árduo trabalho de se projetar variáveis inseridas em um sistema complexo deve ser encarado, por imposição do problema em mãos, como uma junção de ciência e arte: é ciência no que tange à utilização de sofisticados métodos estatísticos sobre um grande número de elementos analisados e é arte ao empregar a intuição construída em anos de afinco e dedicação. Somos cônscios das dificuldades inerentes à missão dos analistas econômicos e devotamos grande respeito por aqueles que apresentam resultados excepcionais na previsão econômica. Com os argumentos expostos acima, apenas intentamos contribuir para a discussão do cenário macroeconômico atual. Nossos resultados indicam que os economistas, tanto no mercado financeiro quanto no Banco Central, fariam bem em diminuir o peso que interpretações de entrevistas costumam ter em suas análises. Quando vemos tamanhas discrepâncias entre o que as pessoas dizem fazer e o que elas, de fato, fazem, um velho ditado do mercado nos vem à mente: put your money where your mouth is.

Samuel Kinoshita é mestre em Economia pela Universitat Pompeu Fabra e colaborador da Idéias Consultoria.