Título: Investimentos compartilhados
Autor:
Fonte: Valor Econômico, 15/10/2007, Opiniao, p. A14

Na agenda internacional das políticas sociais, ganhamos recentemente uma contribuição importante a partir da discussão do conceito de coesão social. Esse foi o tema escolhido para a 17ª Cúpula Ibero-Americana a se realizar no Chile em novembro e sobre o qual estamos discutindo em seminários e reuniões preparatórias organizadas por organismos internacionais como a Secretaria Geral Ibero-Americana (Segib) e a Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (Cepal).

Sob a ótica desses conceitos, os investimentos em programas voltados aos mais pobres têm efeito prático sobre toda a sociedade, com reflexos compartilhados por pessoas e famílias de todas as classes sociais. É um claro reposicionamento das políticas sociais, que passam a ser vistas a partir da interface entre os vários segmentos da economia, política, cultura e meio ambiente, na promoção do desenvolvimento integral e integrado.

Em um primeiro momento, é um investimento direcionado, demonstrando um tratamento prioritário do governo que chega a ser interpretado - por leituras mais apressadas - como atenção especial em detrimento de outros setores da população que também precisam do poder público. Analisando o lugar que as políticas sociais ocupam hoje no governo do presidente Lula, não há como negar seu caráter de prioridade. Mesmo porque, diante de uma dívida social acumulada por mais de 500 anos de história, pouco há de mais justo. Direcionar parcela significativa de recursos para os mais pobres nada mais é que o início do pagamento dessa dívida. Como não fizemos esse acerto no passado, a fatura se apresenta alta. Estamos hoje tentando promover o ajuste de contas enquanto procuramos criar condições de emancipação social e alcançar o patamar de oportunidades iguais para todos.

Ao mesmo tempo, não há como aceitar o rótulo de privilégios. Primeiro, porque não corresponde à verdade e, segundo, porque o investimento não implica na omissão em relação a outras classes sociais. Temos bons exemplos de políticas públicas adotadas no governo que atingem diretamente a classe média, como a ampliação de vagas públicas no ensino superior e novas escolas profissionalizantes de ensino médio. Na área econômica, registramos um aumento expressivo das vagas no mercado formal de trabalho, além da desoneração do Imposto de Renda por meio do desconto de gastos com contribuição de INSS de empregados domésticos e a desoneração da cesta básica e de materiais da construção civil, que beneficiam não apenas a população mais carente.

Mas é necessário também perceber a dimensão de compartilhamento dos investimentos nas camadas mais pobres da população, na medida em que a construção de um projeto nacional mais coeso interessa a todos e tem efeitos práticos na vida do País. Além da dimensão ética de defender e promover a vida e as condições para que seja vivida de forma plena e autônoma, as políticas sociais têm outras que afetam positivamente não apenas seus beneficiários diretos, pois além de serem um instrumento dinamizador de economias locais, apresentam ainda um papel preventivo para garantir a coesão social e a segurança pública.

A desigualdade é um forte fator de desagregação social e de estímulo à violência. Aliás, a própria desigualdade é violenta, excluindo pessoas, famílias e até comunidades inteiras dos direitos elementares da cidadania. Na esteira dessas perdas que violam a condição humana, as pessoas se tornam presas fáceis da criminalidade, sendo as primeiras vítimas fatais de um estado de insegurança.

-------------------------------------------------------------------------------- Contribuição condizente com aquilo que se ganha na sociedade é exercício do princípio da função social da propriedade --------------------------------------------------------------------------------

Na Europa, nos debates mais avançados sobre coesão social, as políticas sociais são tratadas não como um peso ao Estado, mas como um investimento que cria ambiente favorável aos negócios. De acordo com documentos que vêm sendo produzidos recentemente pela Cepal, garantir o sentido de pertencimento e de inclusão é, em si, um fim das políticas públicas. Mas observa-se que também é um meio, pois as sociedades que ostentam maiores níveis de coesão social têm um melhor marco institucional para o crescimento econômico, ao oferecer um ambiente de confiança para os investimentos e regras claras compreendidas, aceitas e seguidas pela população.

Dentre os requisitos para alcançar um nível desejado de coesão social, destacam-se um crescimento econômico alto e sustentável para geração de recursos e postos de trabalho e a existência de políticas sociais eficazes que promovam a luta pela desigualdade, assegurando o direito de todas as pessoas à alimentação, educação, saúde e proteção social. Hoje no Brasil, como mostra a última edição da Pesquisa Nacional de Amostra de Domicílios (Pnad), estamos conseguindo alcançar simultaneamente esses dois objetivos: crescimento econômico e redução das desigualdades sociais.

De certa maneira, esses dois objetivos encontram-se interligados, pois o fim da desigualdade é o caminho mais confiável para a sustentabilidade do crescimento econômico. Além disso, a universalização de direitos elementares da cidadania, como educação e saúde, são condições para que as pessoas possam participar ativamente do crescimento e do mercado de trabalho. Essas questões, juntas, se configuram na base do Estado de Bem-Estar Social, que, no Brasil, tem seu marco jurídico lançado com a Constituição Federal de 1988, ao definir a assistência social no mesmo patamar da saúde e da previdência social como política pública, na perspectiva ainda em construção da seguridade social.

Consolidar essa rede de proteção e promoção social é garantir que todos tenham as mesmas oportunidades, numa linha de ampliação e universalização dos direitos. Para construi-lo, é necessária a participação de todos. Para alcançar o patamar que queremos, temos de enfrentar desafios que se nos apresentam em relação aos pobres, aos trabalhadores, à classe média e também aos empresários, em especial os micro, pequenos e médios empreendedores.

Esses investimentos têm um custo, com o qual a sociedade deve continuar se comprometendo. Certamente alguns setores devem dar uma contribuição mais condizente com aquilo que ganham com a sociedade, como exercício do princípio da função social da propriedade e do lucro. Mas é uma equação de custo e benefício altamente favorável para todos, na medida em que cresce, com os investimentos em projetos em torno da coesão social, a noção de um projeto nacional que crie condições para que nossos filhos e netos tenham mais justiça social, paz e prosperidade no Brasil.

Patrus Ananias é ministro do Desenvolvimento Social e Combate à Fome.