Título: Faltou expulsar o medo
Autor: Mariz, Renata
Fonte: Correio Braziliense, 23/01/2011, Brasil, p. 10

Um mês depois de as unidades policiais invadirem o Complexo do Alemão e a Vila Cruzeiro, no Rio, o Correio volta ao local e encontra não só a manutenção do tráfico, mas também moradores visivelmente assustados, tanto com os bandidos quanto com os mocinhos

Rio de Janeiro %u2014 De tanto serem transmitidas exaustivamente para todo o país, em tempo real, as imagens da ocupação do Complexo do Alemão e da Vila Cruzeiro, na Zona Norte do Rio, ficaram gravadas no imaginário popular. Policiais por toda parte, blindados circulando, toneladas de drogas e armas apreendidas, além de homens fazendo a vigilância nas entradas dos morros, pareciam anunciar o fim da dominação dos traficantes na região. Mas há exato um mês que a Força de Pacificação, liderada pelo Exército e considerada a segunda parte da operação de retomada das duas favelas, começou a trabalhar no local, o lado mais fraco entre os criminosos e a polícia %u2014 o morador %u2014 continua convivendo com o medo.

Durante um dia percorrendo as ruas e as vielas dos dois locais, o Correio encontrou muita resistência de quem mora nas favelas, agora longe dos holofotes da imprensa, de falar sobre a nova realidade. A presença policial quase sempre é elogiada, mas timidamente. %u201CA gente nunca sabe o que pode dizer%u201D, afirma Josefa, que reside no Morro do Alemão, recusando-se a falar o sobrenome. Perguntar sobre a presença de traficantes, tema de um suposto relatório atribuído ao Exército que o próprio nega conhecer, é a senha para fazer a população calar. Quem fala %u2014 e somente sob anonimato %u2014 afirma que o comércio de drogas já voltou a ocorrer no local. A total extinção das regras do tráfico, ainda segundo eles, nunca chegou. %u201CSe você escrever isso, eu vou ser chamado para me explicar%u201D, diz um morador com mais de três décadas no local.

Chefe do Estado-Maior da Força de Pacificação, o coronel Marcelo Araripe admite que %u201Cpequenos traficantes%u201D ainda ocupam as favelas. %u201CSão pessoas sem passagem na polícia e que, portanto, não podemos prender, por mais que tenhamos informações dos crimes praticados. Nesse caso, nosso patrulhamento trabalha com a repressão e com o flagrante%u201D, afirma o coronel. Sobre a descrença da população com relação à atuação dos agentes de segurança, o major Fabiano Lima de Carvalho, também da Força de Pacificação, diz compreender. %u201CComo houve situações anteriores em que o Estado chegou a tomar parte da região e depois saiu, os moradores ficam mesmo reticentes%u201D, diz. Marcelo completa: CA população está começando a passar para o nosso lado.

As 107 denúncias recebidas po r um 0800 e um e-mail abertos pela Força de Pacificação no período de um mês, segundo Marcelo, mostram a retomada de confiança da população no trabalho da polícia. Onze delas (ou 10,2% do total) resultaram em apreensões. Nem todas referem-se a traficantes, drogas ou armas. Muitas são a respeito de problemas corriqueiros da comunidade %u2014 como som alto, briga entre vizinhos, entre outras questões. Dos quatro homicídios registrados pela Força de Pacificação no local, apenas um está sendo averiguado com grandes chances de ter sido praticado por um traficante. Os demais, de acordo com o major Fabiano, vieram de brigas, quase sempre com envolvimento de álcool.

Fabiano destaca, ainda, que a média de homicídios está menor que a taxa verificada na Zona Sul da cidade %u2014 com um saldo de sete mortes no mesmo período. Apesar dos dados oficiais, entre moradores de Nova Brasília, uma das comunidades que fazem parte do Complexo do Alemão, há um temor de mortes a facadas supostamente praticadas ou encomendadas por traficantes como vingança contra moradores. A razão do uso da arma branca seria não chamar a atenção das forças de segurança atualmente em ronda na região. São 1.937 homens no total, que se revezam em turnos. Desses, 85% são militares do Exército; 12%, da Polícia Militar do Rio e o restante, da Polícia Civil. Casas mais altas, antes de traficantes, hoje são pontos fortes do Exército. São cinco, que funcionam 24 horas por dia.

PMs afastados O major Fabiano destaca que, a despeito da percepção de moradores de que o policiamento está escasso, o Exército aumentou seu efetivo. %u201CClaro que nos dias da ocupação, a Polícia Militar do Rio de Janeiro praticamente toda estava aqui. É natural que eles saíssem. Enquanto isso, nós, que éramos 800 homens naqueles dias e só fazíamos o controle do entorno das favelas, aumentamos o efetivo para quase 2 mil e estamos dentro, dispersos%u201D, explica Fabiano. O contingente, entretanto, sofreu uma baixa de 30 militares, afastados na última sexta-feira sob a acusação de terem furtado uma casa na favela da Fazendinha, dentro do Alemão. Vinte e três PMs que atuavam no dia do suposto crime também estão afastados. Segundo a denúncia, que partiu dos próprios soldados do Exército, os homens teriam furtado um ar-condicionado e outros objetos da residência. Eles serão investigados e podem ser expulsos.

Depoimento Intimidação na Vila Cruzeiro

Eram quase sete horas da noite da última quarta-feira quando a reportagem do Correio conversava com uma moradora em uma das vielas da Vila Cruzeiro, no bairro da Penha, no Rio. Enquanto o fotógrafo registrava imagens da fachada da casa dela, um homem aparentando não mais que 30 anos gritou com a equipe, parado em um muro a cerca de cinco metros de distância. Dirigimo-nos até ele, enquanto éramos questionados sobre a razão das fotos. Respondemos que estávamos visitando a casa de seu Cosme, um entrevistado do jornal na época da ocupação. Ele repetia insistentemente que quem mandava ali era ele, e não seu Cosme. Indagou sobre qual imagem tínhamos feito e para quê. Ao responder todos os questionamentos, deixamos claro que só estávamos registrando o bilhete que a moradora tinha deixado na porta de casa, pedindo aos militares que fazem ronda na região que, caso quisessem vistoriar o local, pedissem a chave ao vizinho, no lugar de arrombar a porta. Desconfiado, acompanhado de dois homens visivelmente mais jovens, o rapaz autorizou o fotógrafo a continuar registrando a fachada da casa. (RM)