Título: Por que temer a estabilidade de preços a qualquer custo
Autor: Prado, Antonio
Fonte: Valor Econômico, 17/10/2007, Opiniao, p. A18

Toda vez que se debate a política monetária brasileira há sempre um economista que retira da cartola a crítica à velha curva de Phillips dos anos 70. Os que defendem uma desinflação mais cautelosa e atenta aos sinais da conjuntura são identificados como reinflacionistas, como aqueles que acreditam que um pouco mais de inflação gera um pouco mais de crescimento.

Nesta seara, há estudos para todos os gostos: desde os que demonstram que a busca pela estabilidade de preços no longo prazo contribui para o crescimento sustentado, até aqueles que não encontram correlação firme entre ambos. Mas há um certo consenso de que inflações anuais superiores a um dígito estão associadas a períodos de baixo crescimento na economia e no emprego; e que inflações abaixo de 3% não estão necessariamente associadas a crescimentos robustos do PIB.

As analogias jocosas da inflação com a gravidez, adotadas por alguns polemistas, são pré-revolução sexual. Há processos inflacionários que não podem ser controlados por políticas macroeconômicas, mas desde o fim das grandes inflações da segunda metade do século XX a inflação está sob controle em quase todo o mundo. Em 1994, a inflação média mundial era de 30% e agora já caiu para 4%. Âncoras cambiais de vários tipos (dolarizações, currencies boards, câmbios fixos e semifixos) e, posteriormente, metas de inflação, mantêm sob rédeas a moeda. Fatores estruturais são ainda mais determinantes nessa grande desinflação, como o aumento da produtividade industrial, a abertura comercial e o fenômeno exportador chinês.

A obsessão pela estabilidade de preços a qualquer custo é uma temeridade. Manter a inflação sob controle em limites razoáveis é necessidade e, para nós que sofremos uma hiperinflação, um dever. Mas nada deve ser feito a qualquer custo em política econômica, pois é da sua natureza a arbitragem de perdas. E submeter segmentos da sociedade a sacrifícios desnecessários é, no mínimo, imoral.

Se a meta de inflação deveria ser de 4% ou 4,5% em 2009, é uma questão menor. Fundamental é o Banco Central sinalizar que vai manter a inflação sob controle, mas sem abortar a incipiente retomada dos investimentos na economia brasileira. Esta é a arte que muitos cobram da autoridade monetária, principalmente depois da barbeiragem perpetrada no final de 2004.

Como estamos cada vez mais próximos da inflação mínima que define estabilidade de preços, o BC deve navegar com cuidado redobrado. A definição dessa inflação mínima é o grande desafio. Qual seria ela?

Os banqueiros centrais americanos, Mr. Greenspan e Mr. Blinder, definem-na como aquela que não interfere nas decisões econômicas e contratos. No nosso caso, as indicações seriam a ampliação significativa da participação de títulos públicos prefixados na composição da dívida pública e a taxas de juros decrescentes. Ou o abandono, pelos sindicatos, do uso de indexadores nos acordos e convenções coletivas do trabalho; ou pelos senhorios nos contratos de aluguéis. Os agentes econômicos teriam que esquecer a inflação como elemento relevante em seus cálculos. Bem, estamos longe disso. E, no nosso caso, dada a imensa desconfiança em relação ao voluntarismo político, não acontecerá nem quando a inflação medida for zero.

-------------------------------------------------------------------------------- Meta de longo prazo deve considerar que mesmo países emergentes com economias sólidas estão sujeitos a choques --------------------------------------------------------------------------------

Mas, além desta desconfiança, quase atávica, da brasilidade em relação aos políticos e aos tecnocratas, temos problemas de outra natureza. Outro banqueiro central americano, Mr. Poole, afirma que o objetivo da política monetária deve ser a inflação zero, apropriadamente medida. O que nos diz esse especialista é que a medida de inflação tem distorções para cima, segundo ele, de um ponto percentual nos EUA. Segundo o Relatório Boskin, do Senado dos EUA, a distorção seria de 0,8 a 1,6 pontos percentuais. Isso em uma economia em que a inflação média nos últimos doze anos foi de 2,6%. É uma distorção considerável, de 30% a 60% da taxa média anual.

Tem sentido essa distorção? Sabemos que, por construção, os índices de preços podem ser superestimados em razão da fórmula de cálculo usualmente utilizada, a de Laspeyres. Mas a origem dela aqui é outra e está na rápida inovação de produtos com base técnica na microeletrônica e na abertura comercial que amplia consideravelmente as opções do consumidor. Os índices de preços não captam adequadamente mudança de qualidade nos produtos e o efeito substituição.

Um simples exemplo: um dos milhares de produtos que inundam as lojas todos os anos é o computador Apple. Em 1977, o Apple II valia US$ 1.298 e em 2006, o I Mac básico custava US$ 1299,00. Sem considerar a diferença de poder aquisitivo do dólar em 30 anos, essa marca não subiu de preço. Mas a velocidade do primeiro era de 1megahertz e do segundo de 1,8 gigahertz. Duas mil vezes mais rápido. A memória do primeiro era a de um disquete de 800 kbytes a 1,4 mbytes (opcional) e do atual de 80 gigabytes (80.000 vezes mais memória) e assim por diante. Considerando a qualidade, o preço caiu drasticamente e isso não é medido plenamente. Esse é um exemplo que pode ser estendido a toda a geração de produtos com microprocessadores (vídeo players, CD players, MP3, fax, celulares, TVs, consoles de jogos). Medir preços em um paradigma tecnológico que ainda está longe da sua fronteira de inovações não é fácil e tem implicações ponderáveis.

O problema central nesta definição de estabilidade adequadamente mensurada é que, se a meta de inflação estiver abaixo do valor que define estabilidade real, a política monetária provocará uma deflação na economia. Se a meta de longo prazo for de 2,5% e o erro de medida for superior a esse valor, o BC estará apertando de forma excessiva e desnecessária a política monetária. E, é bom que se registre, não há estudos sobre a existência - pois que podem haver preços subestimados também - e dimensões dessas distorções nos índices de preços em nosso país.

Há um outro problema na definição dessa meta de longo prazo. Ela deve considerar que mesmo os países emergentes com economias sólidas estão sujeitos aos efeitos de choques adversos. Crises financeiras internacionais e instabilidades políticas em países produtores de petróleo e de outras commodities são transmitidas para os preços locais. A meta de inflação tem que considerar esses fenômenos no centro da meta ou nas margens de tolerância. Adotar um núcleo da inflação (core inflation) não bastaria, pois crises financeiras afetam um preço pervasivo que é o câmbio.

Se houver um crescimento substantivo das taxas de produtividade da economia, esses choques podem ser absorvidos de uma forma menos traumática, o que abriria espaço para metas menores ao longo dos anos. Mas esse crescimento da produtividade é dependente da qualidade da política monetária e macroeconômica.

Caso as sinalizações da política monetária sejam percebidas como hostis às decisões de investimentos, ficaremos presos em uma armadilha de baixo crescimento. Teremos a estabilidade das lápides.

Antonio Prado é é economista, doutor pela Unicamp e professor do Departamento de Economia da PUC-SP (licenciado). Foi Coordenador da Produção Técnica do Dieese nos anos 90 e é Chefe da Representação da Presidência do BNDES em Brasília.