Título: África do Sul deve frear com apagão e petróleo caro
Autor: Felício, César
Fonte: Valor Econômico, 17/10/2007, Especial, p. A20

Em 9 de outubro, diplomatas brasileiros, sul-africanos e indianos estavam reunidos para discutir os detalhes da reunião de cúpula dos presidentes do Brasil, Luiz Inácio Lula da Silva, da África do Sul, Thabo Mbeki, e do primeiro-ministro da Índia, Manmohan Singh, que começa hoje, quando a luz acabou em um dos prédios da Chancelaria sul-africana, em Pretória. Acabou e não voltou. Os presentes tiveram que descer as escadas do edifício usando seus telefones celulares como lanterna.

O apagão não foi um episódio isolado. Naquele dia e nos seguintes da semana passada, a megaempresa estatal Eskom, responsável por 95% do suprimento de energia elétrica da África do Sul, reduziu em 20% a sua oferta de 39 mil MW, alegando necessidade de manutenção programada em suas usinas térmicas e problemas com o mau tempo. As chuvas fortes teriam molhado os estoques de carvão, matriz de 86% da energia gerada pela empresa. Para impedir um colapso total, a Eskom realizou um racionamento de energia a sangue frio, com cortes programados. Foi a segunda vez no ano que o episódio ocorreu.

A imprensa sul-africana retratou como o gargalo da infra-estrutura pode deter o ritmo de crescimento da economia sul-africana, que ultrapassou 5% em 2005 e 2006, os maiores índices desde a década de 80. Grandes consumidores, como as siderúrgicas Billiton e Mittal Steel e as mineradoras Anglo Gold e Anglo American, admitiram que tiveram redução de suprimento.

Dois dias depois do início do racionamento, o presidente do banco central sul-africano, Tito Mboweni, anunciou mais um aumento na taxa básica de juros, que alcançou 10,5%, mantendo um ciclo de alta que começou em junho de 2006, quando a taxa estava em 7%. É a estratégia ortodoxa para tentar colocar a inflação anualizada de 6,3% dentro da meta da autoridade monetária, de 3% a 6%, de onde está fora desde abril deste ano.

A reação dura do Banco Central já estava surtindo efeito na economia. A própria autoridade monetária admitiu, em seu último relatório, que o crescimento econômico deve desacelerar este ano. Trabalha com a cifra de 4,5%. Nos jornais especializados em economia de Pretória, uma torrente de estatísticas confirmam a freada: a venda de carros em setembro caiu 13,6%, o consumo de cimento reduziu-se 14% ao longo deste ano, e as vendas no varejo tiveram queda de 4,1% em termos reais desde junho.

Assim como a Eskom desliga a tomada, o BC sul-africano aperta o crédito por um problema da infra-estrutura nacional agravado pelo crescimento econômico. A África do Sul não possui uma gota de petróleo. A tecnologia desenvolvida por empresas como a Sasol e a Petro SA consegue converter carvão e gás natural em combustíveis líquidos, o que supre apenas 36% da crescente demanda nacional. Segundo dados do governo, o consumo de combustíveis saltou de 17,4 bilhões de litros, em 2005, para 17,9 bilhões no ano passado. O restante é importado, principalmente da Arábia Saudita. E a cotação do barril de petróleo oscila atualmente perto de US$ 90, quando era US$ 30 em janeiro de 2004.

O resultado se fez sentir na balança comercial. O gasto anualizado com importações no segundo quadrimestre de 2007 foi de 562,6 bilhões de rands, ou cerca de US$ 83,9 bilhões. No mesmo período do ano passado, eram gastos 444,4 bilhões de rands, algo como US$ 66,3 bilhões. Na ponta de consumo, a alta do petróleo colocou a inflação fora da meta, depois de 44 meses seguidos de perfeito ajuste.

As dificuldades para manter a aceleração econômica devem aumentar a dependência sul-africana em relação aos dois pilares que a sustentam: a grande presença do Estado e a força do setor minerador. Campeã mundial de reservas de ouro, platina, manganês, cromo, vanádio, vermiculita e alumínio silicado, a África do Sul se beneficia da alta das commodities, que garantem rentabilidade à Bolsa de Valores de Johannesburgo. No dia do começo do apagão, o movimento fechou em 31 mil pontos, uma alta de 20% desde agosto.

Do lado estatal, o presidente Mbeki gerencia uma máquina que aumenta seus gastos em relação ao PIB há seis anos consecutivos, atingindo 24,7% da produção nacional no ano passado. Para o ano fiscal de 2007/ 2008, é previsto um crescimento do gasto público de 13,5% em relação ao período anterior.

"Esta situação da Eskom é um inconveniente para toda a população, mas, para as obras da Copa do Mundo, o governo nos garantiu que não faltará energia nem recursos. Não há nenhum impacto", comentou Tumi Makgabo, a gerente de comunicações do Comitê Organizador da Copa do Mundo de 2010, evento catalisador do orgulho nacional, para o qual o governo já reservou o equivalente a US$ 2,5 bilhões, cerca de metade disto apenas para a reforma e construção dos estádios nas nove cidades que sediarão os jogos. O maior deles, que está sendo erguido ao lado da novíssima sede da Federação Sul-Africana de Futebol, em Johannesburgo, terá capacidade para 94,7 mil espectadores. "Será o terceiro maior do mundo, perdendo para o Azteca, no México, e para o Maracanã, no Brasil", arrisca Makgabo.

A Copa do Mundo é apenas um exemplo da ambição dos gastos públicos em um país onde o poder estatal ainda é o grande contrapeso da maioria negra para contrabalançar o poderio econômico branco. Estima-se que 10% da população controla 70% das terras, 98% do sistema bancário e 63% das reservas de platina. Do 1 milhão de funcionários públicos civis, 3 em cada 4 são negros.

Em seu segundo mandato como presidente, que se encerra em 2009, Mbeki lançou o seu próprio PAC, o Accelerate and Shared Growth Initiative for South Africa (iniciativa para o crescimento acelerado e compartilhada da África do Sul), ou Asgisa. São investimentos de 410 bilhões de rands (cerca de US$ 61,9 bilhões) até 2014. O plano visa elevar o crescimento anual ao ritmo de 6% ao ano e cortar pela metade a altíssima taxa de 25% de desemprego da população adulta. Seu pulmão são os investimentos das estatais.

A Eskom responderá por nada menos que um quinto desse valor. A Transnet, um conglomerado estatal que administra os portos, ferrovias, oleodutos e gasodutos do país, arca sozinha com pouco mais de 10% do total. O poder público mantém a empresa de correios, a Sapo, uma empresa de telecomunicações, a Sentech, uma mineradora de diamantes, a Alexkor, a empresa de aviação South African Airways e a indústria bélica Denel.

O repórter César Felício viajou a convite do governo da África do Sul