Título: Liberdade de escolha distante
Autor: Ribas, Sílvio
Fonte: Correio Braziliense, 23/01/2011, Economia, p. 16

Diferentemente dos americanos e dos europeus, os brasileiros ainda estão longe de decidir de quem comprar luz elétrica

A liberdade para o consumidor residencial escolher seu fornecedor de energia elétrica ¿ estimulando uma competição setorial semelhante à da telefonia ¿ é ainda apenas um sonho no Brasil. Limites legais impedem que milhões de clientes deixem de ser cativos de distribuidoras locais e compartilhem o chamado mercado livre de energia, que responde hoje por 27% do comércio de eletricidade. Também diferentemente do que ocorre na Europa e nos Estados Unidos, no embalo da crescente participação de fontes alternativas, pequenos geradores ecologicamente corretos do país ainda têm dificuldade de vender para terceiros.

Técnicos da Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) admitem que o mercado brasileiro já tem infraestrutura tecnológica para acelerar uma abertura rumo à livre concorrência, promovendo mudanças cobradas por agentes do setor que precisam ser aprovadas pelo Congresso. A única dúvida está na capacidade econômica de o país formar uma rede inteligente (smart grid) de energia, adequada a um amplo mercado livre. Ela implicaria a troca dos medidores analógicos presentes em 65 milhões de pontos de consumo do país por equipamentos eletrônicos. A conta dessa conversão interativa está estimada em R$ 2 bilhões.

Mesmo sem ter horizonte claro, empresas de energia traçam planos para novos negócios, de olho em oportunidades trazidas por uma smart grid, que vão desda oferta de banda larga pela tomada até a convergência de comunicações baseada na rede elétrica. Em paralelo, estudos tentam antever o impacto na tarifa de se incrementar o varejo de eletricidade, transformando a rede em plataforma de serviços. ¿A abertura do mercado de distribuição para consumidores excluídos emitiria sinais competitivos de preço¿, ressalta Reginaldo Medeiros, presidente da Associação Brasileira dos Comercializadores de Energia (Abraceel), entidade que reúne membros do mercado livre.

Benefícios O Projeto de Lei do Senado nº 402, em tramitação no Senado desde 2009 e que pode ser votado este semestre, libera a venda de excedentes de energia por consumidores especiais e reduz a demanda mínima de três para um megawatt (MW). O texto de autoria de Renato Casagrande (PSB-ES), ex-integrante da Casa e atual governador do Espírito Santo, com emendas do senador Delcídio Amaral (PT-MS), permite ainda a integração de cargas individuais localizadas em pontos distintos, mas pertencentes a um mesmo grupo econômico. A Abraceel estima que essas medidas podem fazer a participação do mercado livre dobrar.

Para Medeiros, esse avanço rumo à desregulamentação seria mais um passo para simplificar a migração de consumidores e para integrar digitalmente produção e consumo. ¿A rede inteligente permitirá outros benefícios da livre contratação, com mais produtos e eficiência na compra e uso de energia¿, afirma o presidente da Abraceel. Roberto Falco, especialista em smart grid da consultoria Accenture, também acredita em novas perspectivas quando a Aneel autorizar a substituição de medidores. Mas alerta que ¿não se tem mercado livre amplo ou smart grid sem que ambos estejam consolidados¿. Um dos desafios está no fato de as energias alternativas, como a solar e a eólica, apresentarem maior instabilidade na geração que fontes fósseis e hidráulicas.

Carbono ¿Será preciso mais planejamento setorial e tarifação diferenciada. Com 80% de sua geração baseada em hidrelétricas, o Brasil também terá de avaliar custos, benefícios e subsídios¿, avisa Falco. Relatório da Accenture elaborado em parceria com o Fórum Econômico Mundial afirma que medidores digitais até fomentariam tecnologias e o surgimento de fabricantes no país. Falco lembra, contudo, que as smart grids em países como Reino Unido estão amparadas por planos bilionários de fundos governamentais para corte de emissões de carbono.

Frederico Rodrigues, superintendente de estudos de mercado da Aneel, informa que a autarquia ainda mantém aberta a audiência pública iniciada em 2010 para debater sistemas de medição mais modernos, dentro da análise da smart grid brasileira. Sobre o fim do mercado cativo, a exemplo de Portugal, Inglaterra e parte dos EUA, ele reitera que tudo depende das mudanças legais. Rodrigues lembra que o mercado livre começou em 1995, quando a legislação relaxou o monopólio do distribuidor, permitindo a escolha pelo grande consumidor. Três anos depois foram criados os mercados atacadista e comercializador, bases que cresceriam em 2004 via leilões.

CHUVAS ENCHEM RESERVATÓRIOS » Depois de encerrarem 2010 em níveis críticos, as represas das hidrelétricas se recuperaram. O excesso de chuvas elevou os reservatórios das Regiões Sudeste e Centro-Oeste a patamares considerados bastante satisfatórios. Com o volume elevado de água disponível, o preço da energia no mercado atacadista tende a cair, o que vem sendo comemorado pelo mercado e pelas empresas do setor. O bom momento das hidrelétricas também traz outro benefício, que é a pouca necessidade de ligar as usinas térmicas para complementar a oferta. Sem a utilização dessas plantas, o sistema oferta uma energia mais barata. Dados do Operador Nacional do Sistema (ONS) indicam que não há riscos para o abastecimento do país.

ANÁLISE DA NOTÍCIA Consumo consciente

Em 2010, o consumo médio mensal de energia registrado pelo Sistema Interligado Nacional (SIN), responsável por integrar todas as regiões do país, teve um crescimento de 8,3% em relação ao verificado em 2009. Por mês, o brasileiro consumiu uma média de 56.577 megawatts (MW). Essa carga representa quatro vezes a capacidade de produção de uma usina como a de Itaipu, a maior da América do Sul. Com o crescimento do PIB, a demanda consequentemente sofre uma expansão, aumentando ainda mais a importância de sistemas que tornam esse uso mais inteligente. Segundo a Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel), o prejuízo anual causado por desperdícios no setor passa de R$ 6 bilhões, podendo chegar a R$ 8,1 bilhões quando calculados os impostos que deixam de ser contabilizados.

A partir da implementação das chamadas smart grids, os gastos extras que encarecem as contas dos usuários no fim do mês e sobrecarregam desnecessariamente o sistema, podem ser reduzidos. Isso porque as novas redes possibilitam que haja uma comunicação bidirecional entre a distribuidora e o cliente. Assim, se a empresa notar que há uma mudança brusca no consumo de uma residência, poderá verificar se o usuário está sendo vítima de um ¿gato¿, aquela tradicional gambiarra que tem como objetivo furtar a energia alheia, ou se está acontecendo perdas durante o processo de distribuição.

O consumidor também poderá conferir em tempo real como anda o seu gasto, tornando o uso mais consciente. Além disso, o governo pretende criar, como acontece na telefonia, pesos de cobranças diferenciadas no setor. Dessa forma, o cliente terá a liberdade de realizar tarefas como usar a máquina de lavar em horários mais baratos, como após a meia-noite. Resta saber, no entanto, se a conta da substituição dos medidores analógicos pelos digitais, exigidos pela tecnologia, será absorvida pelas distribuidoras ou recairá nos bolsos dos usuários, já que estima-se que será necessária a troca de 65 milhões de aparelhos em todo o país.