Título: Precatórios: um paradigma a ser quebrado
Autor: Gouvêa, Eduardo
Fonte: Valor Econômico, 26/10/2007, Legislação, p. E2

No Brasil, pessoas, empresas e governos agem com total e absoluta irresponsabilidade porque não têm a quem prestar contas, e quando isto acontece acaba prevalecendo a impunidade. O Poder Judiciário, abarrotado de causas, não consegue realizar sua missão, acabando por funcionar como um verdadeiro balcão de rolagem de dívidas para maus pagadores. Cultiva-se, assim, a "cultura de proteção ao devedor". Aqui, sentimos até certo constrangimento em sermos credores nos processos judiciais porque nesta condição somos vistos como seres ambiciosos, querendo prejudicar o "coitadinho" do devedor expropriando-lhe bens.

Os precatórios são requisições de pagamento feitas pelos juízes que julgaram as ações contra o Estado ao presidente do tribunal respectivo. O presidente do tribunal forma uma lista em ordem cronológica dos créditos e encaminha ao prefeito, governador ou presidente da República para que inclua no orçamento e pague, no máximo, até o dia 31 de dezembro do ano seguinte.

E o que fazem os governantes em geral? Poucos pagam durante o ano em parcelas, alguns deixam para pagar tudo no último dia do ano e outros simplesmente não pagam. É bom lembrar que as ações judiciais que dão origem aos precatórios muitas vezes ultrapassam dez anos de tramitação no Judiciário. Há casos de ações de desapropriação com mais de 50 anos desde seu início e ainda não pagas. Há também servidores, aposentados e pensionistas sem receber nenhum centavo do que lhes é devido a título de pensões alimentícias decorrentes de leis e processos judiciais com mais de 20 anos. A verdade é que a maioria das pessoas que consegue receber valores de um processo judicial do Estado, ou já está em idade avançada ou é herdeiro do titular falecido do direito. Isso nos leva a uma conclusão: o sistema dos precatórios privilegia o mau pagador e prejudica o legítimo credor. Cria, portanto, um sistema ético e moralmente inaceitável.

Todos os governos do mundo conseguem resolver suas pendências judiciais, só aqui somos diferentes ou indiferentes às agruras dos credores. É muito complicado explicar a um advogado americano ou europeu que o governo que lesa o cidadão no Brasil não cumpre a decisão judicial e não paga imediatamente após condenado pela Justiça.

-------------------------------------------------------------------------------- Em outros países não há prazo para pagamento, que ocorre diariamente, sem impactar o caixa dos respectivos governos --------------------------------------------------------------------------------

O que não pode continuar a acontecer é criarmos soluções paliativas que onerem os credores - como a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) nº 12, de 2006 - e que favoreçam mais uma vez os devedores. Isto gera insegurança jurídica - e aí não falo apenas dos credores, mas também dos empreendedores de todo o mundo, que se ressentem de pelo menos três coisas para investir em nosso país: respeito aos contratos, segurança jurídica e um Poder Judiciário forte, independente e ágil.

Em sã consciência, que empreendedor de sucesso instalaria, por exemplo, uma fábrica no Rio de Janeiro, sabendo que, caso precise recorrer ao Judiciário para litigar contra o governo, ao fim do processo entrará em uma fila para receber valores que jamais serão pagos? No ano de 2006, o Estado do Rio de Janeiro não pagou a seus credores nem mesmo o valor da correção monetária do estoque de precatórios existente, o que representa dizer que, mantido este cenário, quem está no fim da fila jamais receberá seu crédito. O Rio de Janeiro pagou, no ano passado, somente R$ 20 milhões em precatórios - apenas 1% do valor da dívida total. Lembre-se que somente em propaganda eleitoreira o mesmo Estado do Rio gastou mais de R$ 140 milhões no mesmo ano, ou seja, sete vezes mais do que o valor despendido para os precatórios.

Há inúmeras empresas e pessoas devedoras do Estado que não pagam porque simplesmente não são cobradas com a devida "determinação". Além disso, existem inúmeros ativos ociosos do Estado - como imóveis, ações de empresas, recebíveis de longo prazo etc. A verdade é que foi o sistema criado para os precatórios que provocou o problema. Como em outros países não há qualquer prazo para pagamento, o mesmo ocorre diariamente, sem impactar significativamente o caixa dos respectivos governos. Portanto, criando-se uma solução perene e confiável para o estoque existente de precatórios e uma regra de transição seria possível, sim, acabar com este sistema. Cada um aderiria à que mais lhe conviesse ou poderia, respeitados os seus direitos adquiridos e a coisa julgada, continuar a perseguir o pagamento.

Há inúmeras possibilidades - como a compensação de precatórios com a dívida ativa e com tributos, a securitização da dívida para absorção pelo mercado financeiro, a utilização como garantia em execuções fiscais e a utilização como lastro para empréstimos em instituições financeiras. Nenhuma delas acarretaria qualquer desembolso do caixa dos governos devedores. Por que não fazer então? Porque pagar precatórios representa apenas cumprir decisões judiciais - não dá voto e nem paga comissão.

Ouso dizer que a solução do problema em nosso Estado depende só de um comprometimento com a solução, da comunicação entre as partes envolvidas e do fato de se encarar a questão como uma grande oportunidade. Assim, o Estado se tornará o primeiro da federação a resolver a questão dos precatórios judiciais e dar uma demonstração definitiva de credibilidade e seriedade do governo, não só para a sociedade como para investidores nacionais e estrangeiros. É imperativo fazer respeitar as decisões judiciais.

Eduardo Gouvêa é advogado e presidente da comissão de defesa de credores públicos e precatórios da seccional do Rio de Janeiro da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB-RJ)

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