Título: Brasil: descolamento ainda distante?
Autor: Bolle, Monica Baumgarten de
Fonte: Valor Econômico, 18/10/2007, Internacional, p. A18

O notável desempenho dos fluxos de capitais para países emergentes, apesar da forte turbulência no mercado internacional, tem alimentado as teses de descolamento ("decoupling") das economias destes países. Como ressalta o último World Economic Outlook do FMI, esta nova fase de fluxos para emergentes supera a última, dos anos 90, que culminou nas crises da Ásia e da Rússia em 97 e 98. A diferença entre ambas é que, enquanto nos anos 90 a maioria dos emergentes exibia fortes desequilíbrios externos e regimes cambiais inflexíveis, muitas hoje são superavitárias em conta corrente, têm maior flexibilidade cambial e estão abarrotadas de reservas.

Como o Brasil foi um dos países que mais se beneficiou dessa euforia com economias emergentes, é interessante analisar se de fato a melhoria dos fundamentos foi o principal motivador dos fluxos recentes. Para os simpatizantes das teses de descolamento da economia brasileira, as condições de liquidez internacional e a evolução de outras variáveis externas importam relativamente pouco para a continuidade destes fluxos.

Como avaliar esta proposição? Uma forma é ver a relação entre fluxos de investimento estrangeiro em carteira para o país e seus determinantes - fundamentos domésticos e condições de liquidez global . A ênfase na evolução do investimento estrangeiro em carteira decorre deste ser em geral mais sensível a variações no apetite de risco e nas condições de liquidez que o investimento estrangeiro direto, que tende a ser mais estável que outros fluxos de capital. Além disso, nos últimos meses o país recebeu montante expressivo investimento estrangeiro em carteira. De acordo com o BC, entre janeiro e agosto de 2007 entraram US$ 33,3 bilhões em investimento estrangeiro em carteira, comparado a uma saída de US$ 1,1 bilhões no mesmo período de 2006. O fluxo acumulado entre janeiro e agosto deste ano corresponde a 20% das reservas internacionais do país.

Distinguimos dois períodos na trajetória recente de investimento estrangeiro em carteira para o Brasil: de janeiro de 2003 até junho de 2006; e de julho de 2006 até agosto de 2007. Na relação dos fundamentos domésticos incluímos o crescimento mensal da produção industrial, a volatilidade diária da taxa de câmbio real nos últimos seis meses, o diferencial real de juros em relação aos EUA, o grau de abertura da economia e o superávit primário como proporção do PIB. Já as condições de liquidez global refletem-se nas variáveis aversão ao risco (medido pelo spread das empresas high yield americanas), preços de commodities e liquidez global, medida tanto pelo prêmio a termo (diferença entre o rendimento da Treasury de 10 anos e os juros da T-bill de seis meses), quanto pelo estoque de liquidez mundial (M2 EUA, M3 Zona do Euro, M3 Japão e reservas internacionais do resto do mundo em relação ao PIB mundial).

-------------------------------------------------------------------------------- Em oposição às teses de descolamento, forte fluxo de capital está pouco ancorado na aparente solidez do país --------------------------------------------------------------------------------

Com base nestes dados, comparamos as médias, em cada período, dos dois grupos de variáveis, conforme a tabela. Contrastando ambos, nota-se que o investimento estrangeiro em carteira como proporção do PIB tornou-se mais que dez vezes maior no período recente. Uma comparação das médias dos dois grupos de variáveis em cada período sugere que a liquidez externa desempenhou um papel mais importante neste resultado.

Três dos cinco indicadores de fundamentos domésticos sofreram alterações entre os dois períodos: o diferencial de juros, o crescimento da produção industrial e a volatilidade da taxa de câmbio real. Mas o diferencial de juros caiu substancialmente, o que deveria ser um fator de desestímulo ao investimento estrangeiro em carteira. A variável de crescimento, que quase dobrou entre os dois períodos, tem uma influência ambígua sobre o fluxo de capitais. Por um lado, perspectivas mais favoráveis de crescimento melhoram a capacidade da economia de honrar suas dívidas, tornando-a mais atraente. Por outro, melhores perspectivas de crescimento podem reduzir as necessidades de financiamento externo, diminuindo a demanda por fluxos estrangeiros. A única variável do grupo que sofreu uma mudança marcante entre os períodos foi a volatilidade do câmbio real, que caiu pela metade.

Quanto aos indicadores de liquidez externa, três sofreram mudanças que podem ajudar a explicar o expressivo aumento do investimento estrangeiro em carteira. O prêmio a termo e o spread high yield diminuíram, caracterizando condições de crédito mais frouxas e grau de aversão ao risco mais baixo. O estoque de liquidez mundial ficou mais ou menos constante e os preços de commodities subiram significativamente, melhorando as perspectivas de crescimento da economia e tornando alguns ativos mais atraentes para os investidores externos. À luz das evidências, as teses de descolamento da economia brasileira perdem um pouco da sua força.

Como explicar então a resiliência dos fluxos para o Brasil e a resultante valorização do Real apesar dos efeitos do agravamento da turbulência financeira sobre os mercados de crédito e grau de aversão ao risco? Em parte decorrem dos recentes realinhamentos do dólar frente às principais moedas. O inesperado corte de juros do Fed em meados de setembro e o aumento das incertezas quanto às perspectivas para a economia americana em 2008 tiveram um forte impacto sobre o dólar nas últimas semanas.

Assim, a recente valorização do real e outras moedas emergentes reflete mais a fraqueza dos fundamentos externos (EUA) do que a força dos fundamentos domésticos. Em oposição às teses de descolamento, a exuberância dos fluxos está menos ancorada na aparente solidez do país do que alguns imaginam. Ignorar isso implica expor-se além do desejável às súbitas mudanças de humor do mercado internacional, sempre maiores em momentos de grande incerteza.

Monica Baumgarten de Bolle é economista da Galanto Consultoria Ltda, PhD em Economia pela London School of Economics, e ex-funcionária do FMI.