Título: Desastre anunciado em tintas rosas
Autor: Wolf, Martin
Fonte: Valor Econômico, 26/10/2007, Opinião, p. A19

Pequeno terremoto, poucos feridos. É isso o que diz o Fundo Monetário Internacional (FMI) em seu mais recente relatório, World Economic Outlook (Perspectivas Econômicas Mundiais): a produção mundial cresceu 5,4% no ano passado e crescerá 5,2% neste ano e 4,8% em 2008, apenas 0,4% ponto percentual menos que previsto em julho passado. Que conclusão, então, devemos tirar? Um abalo financeiro substancial no cerne da economia mundial é nulo ou irrelevante? A resposta é: talvez sim; mas há também riscos consideráveis.

Segundo o FMI, o mundo está vivendo um período de crescimento sem paralelos desde o início da década de 70. Entre 2004 e 2008, prevê, o crescimento mundial será, em média, de 5,1% ao ano, e a taxa de crescimento da produção mundial per capita registrará média de 4%. O motor do crescimento mundial tem sido o conjunto de economias emergentes em geral, e as economias emergentes asiáticas em particular. Entre 2004 e 2008, segundo o FMI, o crescimento das economias emergentes será, em média, de 7,8% ao ano, ao passo que os países de alta renda registrarão a média de apenas 2,7%. Nunca antes o crescimento mundial foi tão maior do que o dos países de alta renda.

Esses números são computados em termos cambiais ponderados pela denominada paridade de poder de compra, que infla substancialmente o peso de economias emergentes grandes e pobres, como China e Índia. Esses indicadores produzem um quadro correto do crescimento do bem-estar econômico, mas uma representação enganosa dos gastos em todo o mundo. Em câmbio de mercado, o crescimento econômico mundial deverá ser, em média, de apenas 3,6% ao ano entre 2004 e 2008. O diferencial entre o crescimento a câmbio de mercado e a câmbio ponderados pela paridade do poder de compra também nunca foi tão grande.

Fundamental, porém, é o otimismo do FMI em relação às economias emergentes, a despeito da cautela quanto aos EUA, para cuja economia prevê um crescimento de 1,9% neste ano e no próximo. Para o Fundo, a demanda no resto do mundo ficará, em larga medida, desacoplada do desaquecimento econômico americano.

Inevitavelmente, essa previsão rósea vem acompanhada de advertências. O relatório destaca as condições financeiras e a demanda interna nos EUA, Europa e Japão como maiores ameaças agora do que nas previsões de abril e julho. Em contrapartida, os riscos adversos de inflação e do mercado de petróleo são menores do que antes e os riscos criados por desequilíbrios mundiais são quase de igual magnitude.

Tudo isso é plausível. O impacto do "aperto de crédito" e do desaquecimento no mercado habitacional americano poderá ser qualquer um entre moderado e agudo. Uma análise do aperto financeiro conclui, por exemplo, que a "recente turbulência financeira não foi excepcionalmente grande em comparação com episódios anteriores". Mas o FMI anota três razões pelas quais as conseqüências poderão ser piores: inter-relação com o mercado habitacional; perda de confiança em mercados de crédito securitizados; e impactos sobre a saúde do sistema bancário. Como observou Ken Lewis, CEO do Bank of America: "Já tive todas as dores de cabeça que poderia suportar nos mercados financeiro neste momento". O mesmo poderia dizer a maioria de nós.

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Mais riscos adversos advêm da vulnerabilidade dos mercados habitacionais em países de alta renda. A análise do FMI sugere que França, Irlanda, Holanda, Espanha e Reino Unido podem estar particularmente vulneráveis, mas até mesmo a Alemanha seria afetada por um desaquecimento provocado pelo mercado habitacional em seus parceiros europeus.

Nos mercados emergentes, felizmente, as incertezas associadas à demanda são vistas como tendentes a favoráveis. Uma razão para isso é o impacto de seu enorme acúmulo de reservas em moeda estrangeira sobre o custo do dinheiro, do crédito e sobre os preços dos ativos. No longo prazo, eles poderão criar a ameaça de um surto inflacionário. No curto prazo, constituem estímulo adicional à demanda interna.

O FMI está menos preocupado com a inflação do que em previsões anteriores. As atuais pressões inflacionárias de curto prazo estão relacionadas a mercados de commodities apertados e poderão ser exacerbadas por fraco crescimento da produtividade nos EUA. A previsão de desaquecimento moderado, portanto, deverá ser favorável, desde que alívio monetário determinado por bancos centrais não comprometa sua credibilidade de longo prazo. Os mercados petrolíferos estão particularmente apertados. Considerando as prováveis tendências da demanda, o aperto deve persistir. Mas, também nesse aspecto, um crescimento mais fraco reduzirá a pressão.

Também corretamente o FMI destaca os desequilíbrios mundiais e a gestão dos afluxos de capital para as economias emergentes como fontes de risco. Esses fenômenos são intimamente relacionados, uma vez que o setor privado em todo o mundo está tentando aplicar dinheiro em economias emergentes que, por sua vez, as estão reciclando, rumo ao exterior, na forma de reservas oficiais. Para 2007, por exemplo, o IMF prevê um superávit em conta corrente, somando todas economias emergentes, de US$ 690 bilhões, e outros US$ 495 bilhões em entradas líquidas de capital privado. Esse total então será contrabalançado por saídas de capital governamental para investimento em títulos para formação de reservas - de quase incrível US$ 1,085 trilhão.

Do lado positivo, a expectativa agora é de que os desequilíbrios em nível mundial venham a encolher um pouco como percentual do PIB mundial. Acredita-se que a contrapartida do encolhimento do déficit americano será um aumento nos gastos por parte dos exportadores de petróleo, ao passo que as economias emergentes asiáticas exportarão cada vez mais capital, como percentual da produção mundial. A China, cujo superávit em conta corrente deverá ficar próximo de US$ 400 bilhões neste ano (12% de seu PIB), é o novo gigante dessa gigantesca reciclagem.

Assim, o grande panorama é de persistência de forte crescimento com riscos adversos. Trata-se de um cenário pelo menos plausível, desde que a dinâmica da "grande convergência" seja sustentada paralelamente à estabilidade da "grande moderação". Em última instância, esse desdobramento favorável depende de abertura sustentada e estabilidade monetária. Mas a combinação não pode ser mais assegurada só pelos países desenvolvidos. Os emergentes tornaram-se agora grandes atores no cenário mundial. Estes terão de acelerar o crescimento de sua demanda interna, reduzir o acúmulo de reservas monetárias, admitir ajustes cambiais, abrir mercados e, em suma, ser "participantes responsáveis", para que o crescimento dinâmico seja sustentado nos próximos anos.

Pois o que está agora acontecendo é uma mudança histórica de pesos econômicos. Em que medida o mundo terá sucesso em dar conta desse desafio? Na realidade, as coisas foram melhor do que se poderia temer mesmo poucos anos atrás. Mas a capacidade das instituições internacionais - em especial do FMI - de ajudar é limitada. Em parte devido à determinação férrea dos europeus de conservarem sua posição privilegiada, o FMI, assim como o G-7, é hoje em larga medida um observador dos acontecimentos. Mas graças ao trabalho demonstrado no World Economic Outlook, o FMI está, no mínimo, melhor informado - e assim, em conseqüência, estamos também todos nós.