Título: Bolívia vive mais um período de instabilidade
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Fonte: Valor Econômico, 27/11/2007, Opinião, p. A14

A esperança de refundação da Bolívia a partir de uma Assembléia Constituinte, nutrida pelo presidente Evo Morales, se esfuma e traz indícios perigosos de que se possa transformar em seu contrário: a cisão geográfica, política e econômica do país. Os violentos episódios que desde sábado se desdobram em Sucre, capital da província de Chuquisaca, revelam cruamente os impasses que paralisam a Bolívia. Em reunião em um quartel militar, 147 dos 255 constituintes, quase todos do Movimento ao Socialismo de Morales, aprovaram a nova Constituição sem a presença da oposição. Tiveram de interromper a sessão e fugir - só foram resgatados da cidade por força militar na madrugada.

Movimentos políticos ligados à oposição fizeram da bandeira de mudar a capital para Sucre algo tão ou mais importante que a própria Constituição. Desde 25 de agosto esses movimentos paralisaram a Constituinte, cujos trabalhos já se encontravam à beira do colapso, com motivos suficientes de discórdia para não prosperar. Em uma atmosfera politicamente carregada, a violência explodiu em Sucre com tamanha força que a polícia abandonou-a à sua própria sorte, após três mortes. O presidente Evo Morales, em cadeia de televisão, chamou os promotores do movimento de "delinqüentes".

Solidarizaram-se imediatamente com a oposição de Sucre os governos das províncias de Santa Cruz, Cochabamba, Beni, Tarija e Pando, que promoveram manifestações contra as manobras da minoria governista na Constituinte. Em alguns lugares, queimaram-se as bandeiras de Cuba e da Venezuela.

A mudança administrativa é um pretexto com especial simbolismo, para isolar La Paz e retirar seu papel de sede de um poder federal facilmente sujeito a intimidações pelos movimentos sociais de sua periferia, em especial El Alto, foco de apoio a Morales.

As culpas pela situação de radicalismo atual não são apenas do governo Morales, mas também da oposição. Desde o início, o MAS tentou quebrar a regra, definida nas eleições, de que as decisões na Constituinte seriam tomadas por maioria de dois terços, e não por maioria simples. A obstrução da oposição tinha sua razão de ser, embora não interessasse a ela que a Constituinte chegasse ao beco sem saída em que se encontra. A questão da autonomia, vital para a oposição das províncias, precisa de uma resposta política adequada, sob o risco de o país se dividir em dois. Por outro lado, interromper o funcionamento de constituintes legitimamente eleitos com a exigência de transferência da capital é uma provocação política cujo fim implícito poderia ser a criação de um impasse que açularia os movimentos separatistas.

A manobra governista pode se encerrar aí ou transformar-se em algo pior. Os passos seguintes da Constituinte serão a votação de artigo por artigo, para cuja aprovação será necessária maioria de dois terços, e, em seguida, um referendo popular. Há temores de que a maioria relativa do MAS concretize o que vinha tentando sem sucesso - a aprovação a toque de caixa das propostas. Entre elas está a de reeleição presidencial por tempo indefinido, algo que o presidente venezuelano Hugo Chávez também quer aprovar em referendo em 2 de dezembro. Uma coisa é certa: no prazo estipulado, que expira em 14 de dezembro, a Constituinte não terá avançado quase nada, e muito menos terá aberto o caminho para um consenso mínimo, por mais frágil que fosse.

O imponderável continua a reger a política boliviana. Tentativa de mudar as regras e aprovar a Constituinte a qualquer custo por parte do governo empurrará o país para bem perto de um conflito de grandes proporções. O prolongamento de um ambiente saturado de dúvidas e vazio de respostas leva ambos os contendores à radicalização. Há movimentos armados separatistas e há grupos à esquerda do MAS e de Morales que pregam o fechamento do Senado, visto como inimigo do povo. Os conflitos de Sucre podem, por outro lado, servir de advertência para os perigos secessionistas reais que a Bolívia corre e obrigar os políticos, em especial o presidente da República, a buscarem com seriedade e sem subterfúgios o consenso possível entre as forças políticas. Pode não ser a "refundação" da Bolívia, mas também não será a sua destruição.