Título: Apenas sintomas de um mal crônico
Autor: Carvalho , Eduardo B.
Fonte: Valor Econômico, 27/11/2007, Opinião, p. A14

O Poder Legislativo enfrentou, este ano, uma das mais graves crises de sua história. Em meio a uma forte sensação de impunidade e desrespeito à cidadania, aprofundou-se o abismo existente entre o Congresso Nacional e a sociedade. A instituição, desenhada justamente para expressar a voz do povo e dos Estados, parece sofrer de algum mal crônico.

Naturalmente, a grave dissonância entre Congresso e sociedade não pode ser simplesmente atribuída às vontades individuais de deputados e senadores. A crise da instituição é, na verdade, sintoma de uma pronunciada distorção de representatividade existente no Legislativo.

A concepção bicameral do Congresso brasileiro é inspirada no modelo norte-americano. A Casa Alta representa os Estados que, por livre e espontânea vontade, se uniram para formar a Federação, enquanto que a Casa Baixa expressa diretamente o povo. Infelizmente, o uso deste modelo constitui um dos maiores obstáculos para o desenvolvimento do país.

Em primeiro lugar, a realidade brasileira destoa completamente da experiência norte-americana. No Brasil, foi o poder central, construído por meio de um esforço extremo centralizador durante o Império, visando, sobretudo, à manutenção da unidade territorial, que optou por se dividir. O Mato Grosso do Sul, por exemplo, foi criado por lei federal em 1977. Já os territórios federais de Roraima, Rondônia e Amapá, criados em 1943, tornaram-se Estados juntamente com Tocantins, em 1988. De fato, a grande maioria das unidades federativas do Brasil originou-se de desmembramentos determinados pelo governo central. A representação exercida pelo Senado Federal, portanto, é falha em sua origem.

Caso houvesse, a exemplo do Senado da Espanha, uma regra de correção, como a instituição de senadores adicionais para cada Estado em função de seu número de habitantes, não haveria grandes implicações. Ocorre, entretanto, que a inexistência de tais mecanismos, em associação às enormes diferenças sócio-econômicas do país, leva a conseqüências dramáticas. Dos 81 senadores, 48 são representantes de Estados do Nordeste e Norte, embora essas regiões representem apenas 36% da população brasileira.

Em segundo lugar, os problemas decorrentes da distorção também são acentuados devido à absurda adoção de limites mínimos e máximos para o número de deputados por Estado. Uma forma de mensurar este fenômeno é estimar a população de cada unidade federativa em função de sua real representação na Câmara Federal.

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Os efeitos da distorção são claros. O tamanho do Sudeste na Câmara é reduzido em impressionantes 18%, com uma representação proporcional a uma população de 64,2 milhões de pessoas, muito inferior aos seus reais 78,4 milhões de habitantes. O Nordeste, por sua vez, é dilatado em 6%, equivalendo a 54,2 milhões de pessoas, ao invés de 51 milhões. A maior distorção, no entanto, ocorre na Região Norte, cuja representação é compatível com uma população de 23,3 milhões de habitantes, quantidade 59% superior aos seus reais 14,6 milhões. Entre os Estados, São Paulo é o mais prejudicado, com uma proporção na Câmara Federal equivalente a uma população de apenas 25,1 milhões de indivíduos, número 37,9% inferior ao seu real número de habitantes. Já Roraima, cuja representação é compatível com uma população de 2,9 milhões, tem apenas 400.000 habitantes. Pasmem, espantosos 634% de crescimento!

Em adição à super-representação de segmentos menos desenvolvidos do país, há ainda outro importante desdobramento. Nos Estados da Região Norte, atividades ligadas à administração pública correspondem, em média, a 30,4% do PIB estadual. No Amapá e em Roraima, o peso governamental chega a expressivos 42,4% e 54,1%, respectivamente. Este quadro se repete no Nordeste, onde a participação do governo gira em torno de 23,41%, com o máximo de 30,5% na Paraíba. Por outro lado, já no Centro-Sul, sem o Distrito Federal, a média observada é sensivelmente menor, a saber, respectivamente, 10,2%, 13,1% e 13,8%, para as Regiões Sul, Sudeste e Centro-Oeste. Em São Paulo, este número é de apenas 9,14%.

A super-representatividade de áreas onde há maior presença do Estado possui um efeito devastador: rompe o tênue equilíbrio entre os poderes. A capacidade do Executivo controlar a liberação de recursos do Orçamento da União coloca os representantes destas regiões em posição fragilizada diante de suas pressões, submetendo parte importante do Legislativo às vontades de outro poder da República.

A distorção de representatividade no Congresso é, portanto, uma verdadeira doença que assola os valores republicanos do país, dificultando em muito a aprovação das reformas necessárias para um maior desenvolvimento do Brasil. A nação representada no Congresso é muito diferente da realidade do país, industrializado, urbano, cuja maioria da população reside no Centro-Sul. Inevitavelmente, há uma dissonância entre a agenda de reformas pretendida pela sociedade e as mudanças defendidas por boa parte dos congressistas, criando obstáculos adicionais para a superação dos enormes problemas sócio-econômicos do Brasil.

Não é à-toa que a grande maioria dos brasileiros não se sinta representada pelo Congresso. Pouco surpreende também que a absolvição de Renan Calheiros tenha sido defendida com sucesso pelo Planalto, apostando na rede de influência do senador para aprovar a CPMF. Trata-se apenas de mais um sintoma deste mal crônico que assola o país.

É tempo de encontrar a cura. Para o bem de todos nós.

Eduardo Bittencourt Carvalhoeconomista, é vice-presidente do Tribunal de Contas do Estado de São Paulo e ex-deputado estadual. É especializado em Planejamento Regional e Desenvolvimento Econômico pelo Istituto di Studi per Lo Sviluppo Econômico.