Título: Os economistas e a transformação do país
Autor: Amorim, Ricardo L. C ; Junior, Álvaro Alves M
Fonte: Valor Econômico, 23/10/2007, Opinião, p. A14

"Resistir à visão ideológica dominante seria um gesto quixotesco, que serviria apenas para suscitar o riso da platéia, quando não o desprezo do seu silêncio.(...) [Mas] como a história ainda não terminou, ninguém pode estar seguro de quem será o último a rir ou a chorar." - Celso Furtado, em ´A Construção Interrompida´."

Uma vez o professor Celso Furtado, em uma entrevista antiga, afirmou que "o entendimento dos fenômenos econômicos só é possível percebendo as forças sociais que atuam no processo". Talvez esse seja o maior problema do debate econômico atual. Hoje, economistas de diferentes matizes teóricos discutem os números, fazem previsões e, mesmo assim, demonstram saber muito sobre quase nada. Não se preocupam em sustentar suas análises na compreensão das forças sociais que trouxeram e mantém o país vivendo mazelas que há muito poderiam ter sido superadas. Não se atentam para o fato de que quase tudo que é importante em economia não é acidental, exclusivamente técnico ou meramente conjuntural.

Esse comportamento exprime uma pretensão enorme dos economistas que se crêem "dotados" do poder supremo de suspensão da história. Isto lhes "garante" a prerrogativa de falar, com "autoridade", considerando a vida e a sociedade como algo dado, pronto e acabado. Ignoram sobretudo os diferentes embates entre os grupos sociais que resultam, obviamente, em vitoriosos e derrotados.

Isso parece bastante adequado aos fins daqueles que exercem a maior carga no jogo político nacional. Como assim? Vejamos o Brasil. O país vive um longuíssimo período de baixo crescimento, quase 25 anos. Há adultos que não sabem, nunca viveram numa economia em expansão.

E por que isso aconteceu? Certamente o problema não foi incapacidade ou carência de recursos do país e sua gente. É preciso ter claro que, quando uma ordem econômico-social funciona bem para um grupo forte política e economicamente, este resiste às mudanças e pode, muito bem, "atrasar" o país em relação ao resto do mundo. Isso não quer dizer, obrigatoriamente, que tal conservadorismo seja ruim e a mudança boa. O contrário bem pode acontecer.

Contudo, o que fica é que um arranjo social não se mantém se toda a sociedade clama por mudanças. É impossível sustentar um regime quando este não se apóia em ninguém. Portanto, é preciso ter a consciência de que o fato do Brasil alcançar a industrialização e, mesmo assim, manter enormes contingentes de sua população excluída dos frutos do progresso, não é, absolutamente, um problema conjuntural ou técnico, mas a expressão de um caminho histórico escolhido pelos vencedores.

O problema é que isso é esquecido pelos economistas. Assim, quando estes vaticinam, a partir de números do momento, sobre os perigos que corre a economia, imaginam poder desconsiderar o país profundo, seus grupos sociais, seus interesses e sua força para impor seus desejos. Na verdade, escondem ou desconhecem o melhor da produção intelectual que pensou o Brasil. Passam tristemente ao largo de Celso Furtado, Conceição Tavares, Fernando Henrique, Florestan Fernandes, Darcy Ribeiro, Gilberto Freyre, Sergio Buarque e outros tantos que essa displicência torna-se imperdoável. Consequentemente, suas previsões, quando funcionam, não vão além do curtíssimo prazo.

Fica evidente que os economistas, ao agirem assim, esquecem que o mundo real é composto por homens e mulheres associados em grupos com diferentes poderes para empurrar o conjunto social para o que as suas convicções e interesses ditam. Naturalmente esse poder está concentrado, sobretudo em países como o Brasil, nas mãos daqueles poucos que detém o poder econômico e político, tipicamente entrelaçados aqui. Ou seja, a famosa elite brasileira.

-------------------------------------------------------------------------------- Inserção mundial do país não implicou em divisão equilibrada dos ônus e bônus da modernização entre toda sociedade --------------------------------------------------------------------------------

Logo, a conclusão inevitável é que chegamos à "modernidade econômica" pela mão política e econômica dessa elite poderosa, que soube garantir seus interesses e administrar os conflitos sociais resultantes de suas escolhas, adequando-se como pôde às mudanças na ordem internacional. Tudo convenientemente ignorado pela maioria dos economistas.

Consequentemente, podemos afirmar que a semi-estagnação econômica que vive o Brasil há 25 anos não é um mero acidente, mas sim fruto da vitória dessa elite no embate político cotidiano. Tanto que não é à-toa que, nos primeiros 10 anos de crise (anos 1980), a paralisia situava-se no esgotamento de um processo de acumulação de capital e riquezas garantidos pelo Estado desde Juscelino Kubitscheck. Já nos anos seguintes, os 1990, a tônica passou a ser o reordenamento do papel do Estado, colocando-o como refém de um processo de acumulação (cada vez mais) financeira e que, por sua vez, reproduziu sem contestação as condições impostas pela nova ordem internacional.

As mudanças necessárias para isso, dada a proeminência daquele grupo, não implicaram, mais uma vez, na transferência mais ou menos equilibrada dos bônus e dos ônus entre toda a sociedade. Pelo contrário. Ao capital coube o ganho financeiro, sustentado na enorme dívida pública, e aos trabalhadores, o desemprego, a "flexibilização" de direitos e a queda do rendimento real.

Em suma, a atual situação de crise não alcança a todos igualmente. Ela favorece, como sempre, uma parte importante da elite brasileira, que, por sua vez, dá o devido suporte político para que essa ordem de coisas permaneça.

Ou seja, não há segredo. Não há milagres. Uma sociedade se constrói e reconstrói a partir da atuação das forças que atuam no seu interior e das pressões vindas do ambiente internacional. Pior: se o grupo privilegiado conseguir "pegar carona" na nova ordem externa, mantendo regalias, a adequação não é nada difícil, mesmo que custe caro ao resto da sociedade.

Por tudo isso, fica claro que se o Brasil não muda é por que alguns poucos e poderosos não querem que nada mude.

E a questão é: e os economistas? De que lado ficarão nessa luta?

Ricardo Luiz Chagas Amorim é professor-pesquisador licenciado da Universidade Mackenzie e membro da Sociedade Brasileira de Economia Política. É co-autor da série "Atlas da Exclusão Social" (Editora Cortez).

Álvaro Alves de Moura Junior é professor-pesquisador e coordenador de pós graduação da Universidade Mackenzie.