Título: Mercado de ações resiste à crise apesar do atual aperto no crédito
Autor:
Fonte: Valor Econômico, 23/10/2007, Finanças, p. C4

Depois do pânico súbito que tomou conta do mercado, tudo vai bem. Os preços caíram precipitadamente, mas os investidores acabaram vendo que o Federal Reserve (Fed), sob seu novo presidente, não deixará a economia escorregar. A normalidade foi restabelecida.

Isso foi há 20 anos. A segunda-feira negra, 19 de outubro de 1987, foi o dia em que os mercados de ações despencaram; e Alan Greenspan era o presidente do Fed. Duas décadas depois, na esteira do aperto do mercado de empréstimos imobiliários residenciais subprime dos Estados Unidos, no terceiro trimestre, os mercados de ações estão demonstrando uma confiança parecida em Ben Bernanke, o sucessor de Greenspan.

Apesar das notícias ruins do mercado imobiliário residencial e dos alertas do secretário do Tesouro, Henry Paulson, os mercados de ações dos EUA ainda estão mais altos do que estavam em maio. Surpreendentemente, os investidores vêm comprando influenciados pelas boas notícias (não se preocupe, a economia está bem), e também pelas ruins (não se preocupe, o Fed virá em socorro cortando os juros).

Mas o paralelo com a segunda-feira negra não funciona tão bem quanto os investidores possam esperar, por dois motivos. Primeiro, esta crise financeira está centrada nos mercados de dívida, e não no de ações. A dívida é mais perigosa e na sua atual forma securitizada, muito mais difícil de isolar. É interessante que os mercados monetários parecem mais preocupados com a maneira como o aperto de crédito poderá acabar, do que os investidores em ações. As taxas interbancárias, embora tenham sido afrouxadas, ainda estão altas: sem saber quais instituições podem estar penduradas por causa de perdas no mercado subprime, e assustados com suas próprias exposições, os bancos continuam temerosos de emprestar uns aos outros. E a mudança nos preços dos títulos lastreados em hipotecas provavelmente será um negócio demorado. A notícia de que grandes bancos americanos, cutucados pelo Tesouro, pretendem criar um superfundo onde estacionar instrumentos antes avaliados em dezenas de bilhões de dólares, é um sinal do quanto esse mercado ainda está embaraçado.

A falha mais importante nessa analogia envolve o papel dos bancos centrais. O Fed surgiu da crise, 20 anos atrás, com sua reputação não só ilesa, como reforçada. Desta vez, as falhas dos bancos centrais são dolorosamente visíveis.

Desde a década de 1970, o retrospecto dos bancos centrais vem sendo admirável. Uma geração atrás, a inflação ao redor do mundo era alta e variável. Agora, na maioria dos países ela é baixa e estável. Isso ajudou a alimentar um crescimento constante. Os banco centrais vêm fazendo mais do que simplesmente justificar o argumento de que a política monetária deve ser gerenciada por técnicos e não por políticos eleitos - uma conquista surpreendente numa era democrática.

E "técnicos" é a palavra certa: a atividade de banco central se tornou um negócio cada vez mais técnico, desempenhado por grandes economistas monetaristas equipados com teorias e estatísticas cada vez mais sofisticadas. É certo que ainda há muita arte em meio a toda essa ciência, mas se existem economistas que se tornaram os "dentistas" que John Maynard Keynes imaginou que eles gostariam de ser, estes são os dos bancos centrais.

Mesmo assim, os últimos dois meses demonstraram as limitações dos banqueiros centrais e dos supervisores financeiros (eles nem sempre estão sob o mesmo teto). Isso está claro em pelo menos três aspectos: a política monetária, o modelo econômico e a supervisão bancária.

A política monetária frouxa é em parte responsável pela bagunça que os bancos centrais estão agora tentando limpar. Outros fatores contribuíram para o aperto, incluindo os empréstimos precipitados, a securitização e a globalização: quando os problemas com os empréstimos subprime começaram nos Estados Unidos, bancos de Leipzig (que haviam comprado essa coisa) e Newcastle upon Tyne (que não haviam) foram pegos de surpresa. Não importa a maneira como se olha para isso, os bancos centrais mantiveram as taxas de juros baixas demais por tempo demais. Isso vale mais ainda para o Fed, que cortou as taxas entre 2001 e 2003, as manteve em 1% por um ano e então começou a elevá-las em passos lentos e previsíveis de um quarto de ponto porcentual, alimentando o boom imobiliário. Os resultados disso estão claros para os tomadores de empréstimos subprime que agora se deparam com o risco de perder suas casas, e para os investidores que acabaram com dívidas subprime.

As outras duas limitações estão relacionadas à capacidade dos bancos centrais e supervisores de controlar um sistema financeiro muito mudado. Uma delas tem a ver com as bolhas nos preços dos ativos. Os modelos macroeconômicos usados por muitos bancos centrais concentram-se nas influências de curto prazo sobre a inflação; eles dão menos atenção à oferta de dinheiro e ao crédito. Mesmo quando eles têm as ferramentas certas, os bancos centrais preferem esperar até que as bolhas estourem, antes de fazer operações-limpeza cortando as taxas de juros. O problema é que isso pode dar início a novas bolhas (como aconteceu depois do estouro da bolha pontocom).

A última restrição tem a ver com a supervisão. Os banqueiros centrais certamente alertaram que os riscos financeiros estavam com preços muito baixos; ao contrário de alguns de seus críticos, eles também tinham um olho nas entidades "off-balance-sheet", nas quais os bancos estacionavam seus ativos subprime.

Mas eles não avaliaram qual seria o impacto sobre os bancos se esses ativos arriscados subitamente perdessem valor. Assim como a maioria das pessoas que eles regulavam, os banqueiros centrais não pesaram de todo os efeitos de um aperto de liquidez.

Uma maneira de resolver essas deficiências é simplesmente questão de aprender com as experiências. Se a política monetária estava frouxa demais, muito bem: os banqueiros centrais agora terão a chance de não repetir seus erros. Felizmente a inflação, da maneira convencional como é medida, não se acelerou: o fato das expectativas inflacionárias terem permanecido baixas é um sinal de que os mercados e o público ainda acreditam que os bancos centrais podem manter os preços estáveis. Isso poderá se tornar mais difícil se, por exemplo, a China estiver de fato se transformando em uma fonte de inflação, em vez de pressão deflacionária.

Os bancos centrais também deverão pensar bastante sobre o que poderá ser feito para deter os booms de crédito e preços dos ativos antes que eles estourem. Uma resposta seria considerar uma ampliação da definição de inflação, para que ela inclua imóveis e ações. Por outro lado - e talvez de uma maneira mais plausível -, eles deveriam estar mais dispostos a aumentar as taxas de juros quando o crescimento do crédito é vigoroso ou os preços dos ativos estão aquecidos demais, mesmo que a inflação medida pelos preços ao consumidor estiver sob controle.

A supervisão é mais difícil - principalmente porque o excesso de regulamentação é um perigo. Apesar das reclamações de políticos, a securitização tem sido uma dádiva para a economia mundial. Dito isso, os bancos centrais e autoridades reguladoras certamente precisam de mais informações não apenas sobre o que os bancos têm em sua contabilidade, como também sobre o que eles podem ter de pagar se houver uma crise de liquidez.

Um foco deveria ser a contabilidade: dar preço a alguns instrumentos é tão complicado que os bancos dos dois lados de um negócio intrincado vêm divulgando lucros. O novo Acordo da Basiléia (conhecido como Basiléia 2) vai forçar os bancos a reconhecerem obrigações que até agora eles vinham conseguindo ocultar.

Mas as regras do Basiléia 2 dão muita importância no provisionamento de capital; em períodos como este, o que os bancos precisam é de liquidez (um ponto em que o acordo vem dando menos ênfase).

Não há dúvidas de que os banqueiros centrais vão trabalhar para corrigir essas falhas. Mas considere um paradoxo: o aperto de crédito está sendo provocado pelo sucesso desses banqueiros, assim como por seus fracassos. A inflação baixa e estável e o crescimento vigoroso e constante criaram um incentivo aos investidores para que estes assumissem mais riscos. Os retornos eram tentadores e com os bancos centrais comandados por banqueiros espertos, quem poderia sair perdendo?

Um número muito grande de investidores e banqueiros terceirizaram a avaliação de riscos para pessoas como Greenspan e Bernanke. Dada a complexidade do trabalho deles, isso foi de fato uma exuberância irracional. Se há uma lição que todos deveriam tirar do aperto de crédito é que os banqueiros centrais, assim como os dentistas, são apenas humanos.