Título: Demanda reprimida transforma juizados em repartições públicas
Autor: Carvalho, Luiza de
Fonte: Valor Econômico, 23/10/2007, Legislação & Tributos, p. E1

Implantados em 2002, os juizados especiais federais hoje já recebem uma demanda de processos maior do que as varas comuns da Justiça Federal. Para se ter uma idéia, na 4ª Região da Justiça Federal, que reúne os três Estados do Sul do país, 195 mil ações tramitam nas varas comuns contra 227 mil nos juizados. Embora tenham cumprido seu objetivo de ampliar o acesso da população ao Poder Judiciário, atendendo a uma demanda até então reprimida, os juizados acabaram se transformando em uma verdadeira repartição pública da Previdência Social - a ré da grande maioria dos processos que neles tramita.

Criados pela Lei nº 10.059, de 2001, os juizados têm prazo de até seis meses para julgar processos de até 60 salários mínimos (RS 21 mil) que tenham como rés a União, suas autarquias e fundações. Mas logo de início, o tamanho da demanda reprimida, diante da reduzida estrutura, já anunciaram o problema por vir. Em 2002, primeiro ano de funcionamento, os juizados receberam 360 mil processos e julgaram apenas 118 mil, extrapolando o prazo para o julgamento dos casos. "Os juizados são um exemplo de fracasso do êxito", disse o ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal (STF), em uma recente palestra do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCrim) realizada em São Paulo.

O desafio dos juizados hoje é o de reduzir o volume de processos relacionados à Previdência Social, que atravancam seu funcionamento. A situação é demonstrada no orçamento da Previdência Social. De acordo com dados do Conselho da Justiça Federal (CJF), o Ministério da Previdência gastou aproximadamente R$ 1,8 bilhão em 2006 com as condenações em processos judiciais que tramitaram nos juizados. Neste ano, apenas até o mês de setembro já foram gastos R$ 1,7 bilhão.

O problema é que muitos destes casos, segundo magistrados e advogados que atuam nos juizados, poderiam ser resolvidos pela via administrativa - ou seja, pelo próprio Instituto Nacional do Seguro Social (INSS). Segundo o advogado especialista em direito previdenciário, Wagner Balera, do escritório Balera, Gueller, Portanova e Associados, o INSS estabeleceu a "cultura da má-vontade", fazendo com que o segurado seja forçado a entrar com ações na Justiça, onde em geral encontra respaldo para seu pedido. "O aparelho do Estado foi duplicado à toa", diz Balera.

Na 3ª Região da Justiça Federal, que reúne os Estados de São Paulo e do Mato Grosso do Sul, tramitam nos juizados 370 mil processos, sendo que 350 mil tem como réu o INSS. Segundo a juíza Marisa Ferreira dos Santos, coordenadora dos juizados da 3ª região, em setembro de 2006 o órgão chegou a ter 1,2 milhão de processos, sendo que a maioria deles poderia ter sido resolvida administrativamente. A conseqüência é um tempo médio de tramitação dos processos que já chega a três anos. O desembargador Benedito Gonçalves, coordenador dos juizados da 2ª região - que reúne os Estados do Rio de Janeiro e Espírito Santo - diz que a região sofre com o "boom" de algumas demandas previdenciárias. Desde maio, o número de processos no 1º juizado da capital do Rio saltou de três mil para 16 mil, devido a uma gratificação denominada "G-Data" e a um resíduo de correção de poupança.

No Sul do país, um dos maiores problemas, segundo o desembargador Néfi Cordeiro, coordenador dos juizados da 4ª região, está relacionado às aposentadorias rurais, que representam 40% dos processos. Isto porque o INSS entende que o trabalhador rural aposentado deve comprovar anualmente que trabalhou no campo, do contrário perde o direito à aposentadoria. Embora na Justiça já esteja pacificado o entendimento de que é preciso provar o trabalho no campo apenas uma vez, o INSS continua negando o benefício administrativamente - fazendo com que o segurado vá ao juizado buscar seu direito à aposentadoria.

Na avaliação do ministro do Superior Tribunal de Justiça (STJ) Gilson Dipp, coordenador geral da Justiça Federal, o problema da falta de estrutura dos juizados é ainda mais grave na 1ª e na 5ª regiões, devido à maior carência de varas federais. Na 5ª Região, que reúne os Estados do Nordeste do país, há 27 juizados, mas somente 13 funcionam de maneira autônoma - ou seja, sem estarem ligados às varas federais comuns. Em média, há 12 mil processos tramitando nos juizados desta região, e é necessário fazer mutirões itinerantes pelas cidades do interior. Segundo o desembargador Marcelo Navarro, coordenador dos juizados da 5ª região, muitos juizados só possuem juízes titulares, dificultando o julgamento de recursos. Já na 1ª região, que reúne os Estados do Norte e do Centro-Oeste, os números oscilam bastante - nos juizados do Piauí há, em média, 80 mil processos tramitando, enquanto em Minas Gerais há 20 mil. Segundo o desembargador Antonio Sávio, coordenador dos juizados da 1ª região, uma boa saída tem sido a conciliação pré-processual, feita em postos do INSS localizados nos juizados.

Em alguns locais, como São Paulo e Distrito Federal, o INSS criou agências de atendimento para as demandas judiciais para o cumprimento de sentenças dos juizados. A agência de São Paulo possui 47 funcionários e recebe em média cinco mil processos por mês referentes a benefícios previdenciários e 500 mil sobre revisões de índices como o Índice de Reajuste do Salário Mínimo (IRSM). Para Sérgio Fava, chefe de serviço da agência de São Paulo, a causa do grande número de processos é a diferença de interpretação dos dois órgãos - juizados e INSS. "O INSS já está trabalhando para adaptar as instruções normativas às decisões judiciais", afirma Fava.

Para o ministro Gilson Dipp, os juizados fizeram vir à tona uma demanda reprimida da população que não tinha acesso à Justiça. "A estrutura prevista não foi suficiente", diz. Segundo ele, até o fim do ano entrará em vigor um acordo assinado entre o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), o Ministério da Previdência, o INSS e a Advocacia-Geral da União (AGU) que determina que o INSS agilize a concessão de benefícios previdenciários e não recorra em processos que se referem a questões que envolvam jurisprudência já consolidada na Justiça. "Iremos apresentar ainda um projeto de lei para a estruturação das turmas recursais, que estão funcionando precariamente nos juizados", diz Dipp.