Título: Lucidez para acabar com balbúrdia institucional
Autor:
Fonte: Valor Econômico, 19/10/2007, Opinião, p. A14

O Senado deu a resposta que pôde ao Supremo Tribunal Federal (STF), ao aprovar a toque de caixa, em dois turnos, a proposta de emenda constitucional que regulamenta a perda de mandato por infidelidade partidária. Certamente não haverá tempo hábil para que a Câmara aprove o dispositivo antes da próxima quinta-feira, quando o Tribunal Superior Eleitoral deve regulamentar, ou legislar, sobre a forma e as condições para que os partidos recuperem os mandatos dos políticos infiéis. Ainda assim, o Senado tenta restaurar a sua imagem tomando para si a sua atribuição constitucional, a de legislar. É um gesto de sanidade tardia num quadro de completa anomalia institucional, onde a deficiência de um poder justifica uma atitude invasiva de outro poder, e onde a disputa política deixa de ser delimitada pela preservação do papel de cada instituição em um regime democrático.

A "reengenharia institucional" do Supremo Tribunal Federal (STF) - assim o ministro Gilmar Mendes designa a mudança de comportamento da Alta Corte, em entrevista publicada na edição de ontem do Valor - tem invadido as funções do Legislativo, ao assumir como função própria a "sentença de perfil aditivo", ou seja, não apenas interpretar por similaridade, mas regulamentar procedimentos e definir normas que, ao se tornarem jurisprudência, ganham status de leis. Esse papel tem sido exercido sobretudo no que o STF interpreta como vácuos da lei eleitoral e partidária, criando um clima de insegurança jurídica no mercado político. O irônico, contudo, é que isso tem acontecido por demanda dos próprios partidos - são eles que, em consultas ao Tribunal Superior Eleitoral (TSE) e ao STF, têm incentivado a Justiça a assumir a função de "legislador positivo".

No período militar, os partidos acionavam o Judiciário em questões eleitorais e partidárias, e o Supremo desempenhou um papel extremamente importante como garantidor de direitos num momento em que o Legislativo estava limitado na sua atribuição de legislar por um regime de força. Não era uma disputa política que estava em jogo, mas a garantia de direitos. Nos últimos anos, no entanto, a radicalização da disputa política (e isso não apenas nos governos Lula, mas também nos anteriores) transcendeu o espaço político e invadiu os tribunais. Enquanto oposição, não foram poucas as vezes que o PT, minoritário no Congresso, estendeu a arena política até o Judiciário, provocando decisões do STF sobre questões que o Congresso deveria decidir. Foram os partidos de oposição de agora, todos eles representados no Congresso, os autores das ações que levaram o tribunal a extrapolar sua atribuição estrita de interpretar a Constituição e as leis aprovadas pelo Legislativo, e definir a punição extrema para a infidelidade partidária, a perda do mandato. Quando governo, PSDB, PFL e PPS foram beneficiários da infidelidade; na oposição, os provocadores da decisão do STF.

Da mesma forma, a excessiva ampliação da arena de disputa partidária também transforma o Congresso, nos momentos de crise, em autoridade policial e jurídica, em julgamentos altamente partidarizados e com motivação eleitoral. Correndo por fora, um governo que herdou da ditadura um mecanismo para legislar, embora de forma definitivamente mais branda, usa a medida provisória à farta, também sob a justificativa da ineficiência do Congresso.

Pelo menos o Senado, onde governo e oposição se uniram na quarta-feira para aprovar a emenda que define regras para punição da infidelidade partidária, foi tomado de uma lucidez tardia - e isso pode ter ocorrido porque a crise provocada pelo excessivo apego do senador Renan Calheiros ao cargo de presidente levou a credibilidade da instituição ao fundo do poço. De alguma forma, a instituição parlamentar deu uma resposta ao ministro Celso Mello que, após a decisão do STF, ao ser indagado o que ocorreria se o Congresso definisse mudanças na decisão do tribunal, afirmou que "quem tem o monopólio da última palavra é o Supremo e ninguém mais". Mas a sensatez não vem de um único lado. Na entrevista ao Valor, o ministro Gilmar Mendes afirmou que a regulamentação que o STF procede nos hiatos legais é provisória, e obviamente deixará de produzir efeitos se o Congresso legislar e suprir essas deficiências. Essas atitudes podem ser um bom início para o fim da balbúrdia institucional.