Título: Corrigindo a História
Autor: Braga, Benedito
Fonte: Valor Econômico, 19/10/2007, Opinião, p. A14

Todos são favoráveis ao desenvolvimento sustentável. Apesar disso, há intensa divergência de ênfase entre os que se preocupam com o desenvolvimento e os que defendem a sustentabilidade. Existem ainda os que olham apenas para o meio ambiente, sem a devida visão holística. Uma proposta objetiva para aperfeiçoamento do processo de licenciamento ambiental de usinas hidroelétricas foi apresentada numa audiência pública da Câmara dos Deputados por Jerson Kelman, atual diretor-geral da Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel). Foram muitas as reações por parte do setor ambientalista. Algumas extrapolaram a área energética e ambiental e lançaram críticas ao ordenamento do uso de nossos rios e lagos pelas entidades públicas encarregadas da gestão dos recursos hídricos.

Três dessas críticas merecem esclarecimentos por conter informações equivocadas sobre a gestão das águas em nosso País.

Primeira afirmação: o Conselho Nacional de Recursos Hídricos (CNRH) seria um órgão que atenta contra o princípio federativo porque o governo federal tem maioria na sua constituição. Dos fatos: o CNRH é composto por representantes de ministérios e secretarias especiais da Presidência da República, conselhos estaduais de recursos hídricos, usuários (irrigantes, indústrias, geradores de energia, pescadores, companhias de abastecimento de água e esgotamento sanitário, entre outros) e por representantes de organizações civis de recursos hídricos, totalizando 57 membros. Portanto, o Conselho não só inclui os Estados mas vai além, abrigando toda gama de representação da sociedade civil. E foi sob esse respaldo democrático que o CNRH decidiu, por exemplo, sobre o projeto de transposição do São Francisco, no cumprimento da Lei 9.433/97, que lhe dá a competência para "deliberar sobre os projetos de aproveitamento de recursos hídricos cujas repercussões extrapolem o âmbito dos Estados em que serão implantados". É evidente o bom senso da determinação legal e não há porque questionar a sua aplicação.

Segunda: o Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos Hídricos (Singreh) não disporia de mecanismo para impedir o contingenciamento de recursos recolhidos pelo Executivo na cobrança pelo uso da água nas bacias hidrográficas. Efetivamente, as agências reguladoras têm sido severamente contingenciadas, inclusive a Agência Nacional de Águas (ANA). Porém, não no caso dos recursos advindos da cobrança pelo uso da água nas bacias hidrográficas, graças ao empenho da ministra Marina Silva e da própria ANA, que conseguiram convencer o Congresso Nacional a aprovar a Lei 10.881/04. Essa lei obriga que todo centavo coletado numa bacia hidrográfica retorne obrigatoriamente para ela e seja utilizado para a recuperação da bacia.

-------------------------------------------------------------------------------- A gestão integrada de recursos hídricos do Brasil é exemplo para o mundo, pois envolve governos e sociedade --------------------------------------------------------------------------------

Não é o governo federal que define o valor a ser cobrado, mas sim o comitê da bacia (não confundir com o Conselho), que é um verdadeiro parlamento das águas no qual participam usuários e representantes de ONGs, universidade, governos municipais, estaduais e o federal. A gestão participativa é valorizada e o mecanismo de tomada de decisão inclui todos os interessados, num processo altamente democrático. Hoje já existem implantados sete destes organismos de bacia hidrográfica e em dois deles o mecanismo da cobrança pelo uso da água foi implementado para prover recursos para recuperação ambiental. Até 2006, já foram arrecadados na bacia do rio Paraíba do Sul R$ 25,4 milhões e na bacia do rio Piracicaba R$ 10 milhões. A ANA repassou integralmente esses valores para os respectivos comitês e ainda apoiou tecnicamente a formulação de planos de uso sustentável dos recursos hídricos, principalmente para viabilizar o tratamento dos esgotos, ainda lançados em grande quantidade nos rios sem qualquer tratamento.

Além de apoiar diretamente os comitês de bacia, a ANA criou um programa para apoiar os municípios no tratamento de seus esgotos. Mas, ao invés de liberar verbas antecipadamente, o programa "paga pelo resultado", ou seja, após a inauguração. Desde que a estação de tratamento de esgotos funcione, e corretamente, o município recebe o equivalente a 50% do custo estimado da estação, em prestações trimestrais. A garantia de liberação destes valores pela ANA permite ao município levantar empréstimo junto a agentes financiadores oficiais. Este programa incentiva inovação tecnológica e o combate à corrupção. Até 2004, foram viabilizadas 37 novas estações de tratamento, num investimento global de R$ 272 milhões, graças ao efeito catalisador da "compra de esgoto tratado". Em 2007, mais R$ 40 milhões estão sendo aplicados no programa.

A terceira crítica: o setor elétrico teria ficado isento do pagamento pelo uso da água em usinas hidroelétricas. Dos fatos: a Lei 9.984/00, que criou a ANA, determina que 0,75% do valor da energia gerada por usinas hidroelétricas destinam-se ao pagamento pelo uso da água. Como essa cobrança é incluída na tarifa de energia, os consumidores de eletricidade, espalhados por todo o país, pagam pelo uso de recursos hídricos, diferentemente da cobrança estabelecida pelo comitê de bacia, que é arcada somente pelos usuários de água da correspondente bacia. Os recursos advindos da cobrança do setor elétrico são utilizados para implementação do Sistema de Gerenciamento dos Recursos Hídricos em todo território nacional. Faz todo sentido, pois caso essa arrecadação só pudesse retornar para a bacia onde foi gerada seria impossível, por exemplo, beneficiar o Semi-Árido do Nordeste Setentrional, onde não existem hidroelétricas.

Comparando o tempo em que o setor de recursos hídricos era dominado pelo setor elétrico, antes dessa reforma capitaneada por Kelman, vê-se que avançamos muito. Hoje o Brasil já é exemplo para o mundo. Aqui foi colocada em prática a gestão integrada de recursos hídricos, que engendra cooperação entre governos e sociedade civil para limpar nossos rios e aumentar a disponibilidade de água no Semi-Árido.

Benedito Braga é diretor da ANA, professor titular da Escola Politécnica da USP e vice-presidente do World Water Council (WWC).