Título: Sinto clima de Cancún no ar, diz Mandelson
Autor: Landim, Raquel
Fonte: Valor Econômico, 19/10/2007, Especial, p. A16

O comissário de Comércio da União Européia, Peter Mandelson, sente um "clima de Cancún no ar" nas últimas semanas. Ele teme o fracasso das negociações da Rodada Doha, da Organização Mundial de Comércio (OMC), e culpa o Brasil. "Não é aceitável se esconder atrás do Mercosul como justificativa para a incapacidade de dar uma contribuição razoável para o sistema multilateral", disse ao Valor no seu gabinete no prédio Berlaymont, sede da Comissão Européia, em Bruxelas. Ao citar Cancún, Mandelson se refere à reunião no fim de 2003, na qual a negociação de modalidades deveria ter sido concluída, mas que terminou em impasse com a criação pelo Brasil do G-20. Até hoje os países ainda não chegaram a um acordo.

O Brasil está novamente organizando as nações em desenvolvimento para pedir mais flexibilidade para uniões aduaneiras, depois de concluir que será difícil chegar a um acordo com a Argentina sobre a lista de produtos industriais sensíveis. A iniciativa é apoiada pela África do Sul, mas irritou os gigantes do comércio mundial, EUA e UE. "Não posso concordar com mais flexibilidades e colocar isso como um acordo viável para os 27 Estados-membros", disse Mandelson. "Eles ririam de mim e eu provavelmente mereceria."

Mandelson apoiou a iniciativa dos EUA de limitarem os subsídios agrícolas conforme a proposta dos mediadores da OMC e disse que um teto de "US$ 14 bilhões e alguma coisa" seria justo. Questionado sobre a falta de clareza da UE na administração das cotas agrícolas, reagiu de mau humor. "Antes que o Brasil acuse a UE de segurar a negociação, pode ser uma boa idéia, pelo menos uma vez, tomar a iniciativa e colocar sobre a mesa algum comprometimento, atender os interesses dos outros e não apenas os seus."

Valor: O Brasil e outros países em desenvolvimento estão pedindo mais flexibilidade para uniões aduaneiras como o Mercosul na área industrial. Qual é a sua opinião sobre o assunto?

Peter Mandelson: Não sei exatamente o que o Brasil está buscando. Na última vez que conversei com Amorim (ministro Celso Amorim, das Relações Exteriores), ele disse que o Brasil estava preparado para negociar com base nos textos propostos pelos mediadores em agricultura e indústria. E que encorajaria outros a fazer o mesmo. Espero que ainda seja o caso. Qualquer alternativa fora do texto, terá um efeito muito negativo na negociação. Não acho que pedir flexibilidades adicionais seja razoável quando as demandas para os países em desenvolvimento na indústria são modestas. Em alguns países e setores, será necessário um ajuste de 1% ou 2% nas tarifas atuais em dez anos. É um fardo intolerável para o Brasil? Ou qualquer país em desenvolvimento similar dado o crescimento de suas economias nos últimos dez anos? A impressão que tenho dos homens de negócios do Brasil é que não. Concordo com o chefe do Departamento de Relações Internacionais da Confederação Nacional da Agricultura quando diz que a proposta industrial do Brasil é insuficiente. Ele vai além e afirma: "Se queremos fazer negócio, temos que oferecer algo em troca". Acredito que ele está certo.

Valor: O problema do Brasil não é apenas interno, mas chegar a um acordo com a Argentina..

Mandelson: No caso do Mercosul, apenas alguns produtos sofrerão cortes reais. Não é aceitável se esconder atrás de uma união aduaneira regional como justificativa para a incapacidade de dar uma contribuição razoável para o sistema multilateral.

Valor: O sr. vê o Mercosul como uma união aduaneira?

Mandelson: Temos negociações com o Mercosul como um bloco, seria muito estranho eu dizer algo diferente disso.

Valor: Os EUA estão preparados para reduzir os subsídios agrícolas para algo entre US$ 13 bilhões e US$ 16 bilhões. É suficiente?

Mandelson: Foi um passo importante os EUA aceitarem esse intervalo. Ao observar a média anual dos subsídios americanos, é possível ver que entre 1995 e 2001, o país concedeu US$ 15,26 bilhões por ano. Entre 2002 e 2005, foram US$ 15,85 bilhões. E, entre 1995 e 2005, foram US$ 15,46 bilhões. Com base nesses dados, chego a conclusão de que US$ 14 bilhões e qualquer coisa seria um teto justo.

Valor: Os Estados Unidos dizem que a nova Farm Bill não é uma posição negociadora, mas o Congresso deve aumentar os subsídios. Como o sr. vê isso?

Mandelson: É por isso que precisamos da conclusão da Rodada, para limitar os EUA. O Congresso terá que aceitar o que for acordado multilateralmente. E é por isso que é tão importante para o Brasil. A única forma de reduzir subsídios distorcivos é através de negociações multilaterais. Se perdemos essa oportunidade, não surgirá outra em um futuro próximo

Valor: Os americanos estão negociando sem a TPA (Trade Promotion Authority, autorização do Congresso para o Executivo fechar acordos). É um risco?

Mandelson: Seria um risco se o Congresso estivesse controlando a posição do USTR (US Trade Representative). Uma coisa é negociar com o USTR. Negociar com o Congresso inteiro seria inaceitável. Eles poderiam dizer ao USTR: "Vocês podem oferecer isso, mas não aquilo, caso contrário não estenderemos a TPA". É por isso que sempre acreditei que é muito importante renovar a autorização. No momento, parece que o Congresso não está interferindo, mas eu não estaria confortável indefinidamente. A questão central é conseguir um desbloqueio, fechando um acordo sobre as modalidades para dar base ao Congresso americano para renovar a TPA.

Valor: É possível terminar essa negociação de modalidades este ano? Caso contrário, as eleições americanas em 2008 podem atrasar ainda mais o processo?

Mandelson: Acho que podemos e devemos concordar sobre modalidades até o fim deste ano. Não será fácil em 2008, dada a pressão da corrida presidencial americana. Mas comecei a ficar preocupado. Venho detectando um clima de Cancún reemergindo nas últimas semanas. Seria fatal para a negociação. Essa é uma rodada do desenvolvimento, sim, mas isso não significa que os países em desenvolvimento devem nos ver como rivais. Nesse ponto da negociação, as pessoas estão nervosas e buscam tomar posições para conseguir as melhores vantagens. Todos devem ganhar. Devemos ser homens de Estado e não políticos. Isso significa considerar os interesses de todos. Terminar com um acordo só em agricultura simplesmente não dará certo. Temo que tentem isso, apesar do encorajamento que tive com o comunicado da reunião do IBSA (Índia, Brasil e África do Sul). Os países em desenvolvimento precisam liberalizar o comércio com outras nações em desenvolvimento. Essa não é uma questão norte-sul, mas sul-sul. As maiores barreiras experimentadas pelos países em desenvolvimento estão em seus próprios pares.

Valor: Por que o sr. acha que está um clima de Cancún no ar?

Mandelson: Por causa dessa linguagem norte-sul e a tentativa de estigmatizar. Diferentes países em desenvolvimento têm diferentes necessidades. Não é errado concluir e dizer isso. Quando abordo essa questão, sugerem que quero dividir os países em desenvolvimento. Não é verdade. Estou simplesmente constatando um fato.

Valor: O Brasil reclama que a UE não explica como as cotas agrícolas serão administradas. Quando isso vai acontecer?

Mandelson: A União Européia indicou até onde pode ir mais do que qualquer um. Antes de o Brasil acusar a UE de segurar a negociação, seria uma boa idéia, pelo menos uma vez, tomar a iniciativa e colocar sobre a mesa novos comprometimentos, demonstrar preparo para atender as necessidades dos outros e não apenas as suas. É isso que gostaria de ouvir nesse estágio e não reclamações infundadas de que não estamos fazendo o suficiente em agricultura. Reduziremos pela metade as tarifas em agricultura e indústria. Eliminaremos todas as tarifas altas que ainda existem na indústria, como têxtil, confecção, sapatos ou pescados. Nos comprometeremos com a total eliminação dos subsídios à exportação e com 80% de redução no apoio doméstico, desde que os EUA façam algo proporcional. É uma oferta muito substancial que está na mesa para que o Brasil e outros contribuam para o fracasso das negociações. O que me intriga é porque o Brasil resiste, já que deve ganhar tanto em agricultura e indústria e é solicitado a contribuir tão pouco. Se avaliarmos o coeficiente mais ambicioso proposto pelo mediador industrial, o Brasil se comprometerá a limitar as tarifas em uma média de 12,5%, que está abaixo dos 11% aplicados atualmente. Agora, por favor, observe a Argentina. Eles terão que se comprometer a manter as tarifas em uma média de 12,4%, o que significa 20% acima dos atuais 10,4%. Se concordamos com mais flexibilidade ainda, o que sobrou na negociação industrial estará perdido. Não poderia colocar isso como um acordo viável para os 27 Estados-membros. Eles ririam de mim e provavelmente eu mereceria.

Valor: As negociações entre o Mercosul e a União Européia estão paralisadas desde 2004...

Mandelson: Não estão paralisadas. Temos uma negociação multilateral em andamento. E na conversa com o Mercosul a agricultura é muito importante. Não podemos retomar até saber o que vai acontecer com Doha. Todo mundo sabe disso.

Valor: Mas a UE começou a negociar um acordo com a Comunidade Andina e se prepara para iniciar a discussão com a América Central nos próximos dias. Por que essas negociações caminham e com o Mercosul não?

Mandelson: Essas negociações não estão caminhado. Os mandados acabaram de ser acordados. O que você espera ver na próxima semana? Um acordo? É claro que não.

A repórter viajou a convite da União Européia