Título: A democratização da ajuda
Autor: Jeffrey Sachs
Fonte: Valor Econômico, 03/02/2005, Opinião, p. A13

A torrente de ajuda oferecida em resposta ao tsunami do Oceano Índico trouxe esperança a um mundo conturbado. Diante de uma tragédia iminente, famílias de trabalhadores em todo o mundo abriram as suas carteiras em prol das vítimas do desastre. O ex-presidente Bill Clinton chamou essa resposta de "democratização da assistência ao desenvolvimento", pela qual as pessoas conferem a sua ajuda não só através dos seus governos, mas, também, por meio dos seus próprios esforços. Embora mais de 200 mil pessoas tenham perecido no desastre do tsunami, número equivalente de crianças morre a cada mês de malária na África, desastre que chamo de "tsunami silencioso". O tsunami silencioso da malária da África, no entanto, é em grande parte evitável e controlável. A malária pode ser evitada de forma significativa, e pode ser tratada com taxas de sucesso próximas de 100%, através de tecnologias disponíveis de baixo custo. As vítimas africanas da malária, porém, assim como as demais pessoas que vivem em outras partes do mundo, são geralmente pobres demais para terem acesso às tecnologias que salvam vidas. Um esforço global, semelhante à resposta ao tsunami, poderá mudar essa situação desastrosa, salvando mais de um milhão de vidas por ano. Nesse ponto reside a mensagem principal do novo relatório do Projeto Milênio das Nações Unidas, entregue em meados de janeiro ao secretário-geral da ONU, Kofi Annan. O projeto, que dirijo em nome do secretário-geral, representa um esforço promovido por mais de 250 cientistas e especialistas em desenvolvimento, incumbidos de identificar maneiras práticas de atingir as Metas de Desenvolvimento para o Milênio, de reduzir a extrema pobreza, doença e fome até o ano 2015. Nosso novo relatório, intitulado "Metas de Desenvolvimento para o Milênio: Um Plano Prático para atingir as Metas de Desenvolvimento do Milênio" (disponível em unmillenniumproject.org), mostra que essas metas podem ser alcançadas. A chave para cumprir as Metas de Desenvolvimento para o Milênio em países pobres é um aumento no investimento nas pessoas (saúde, educação, nutrição e planejamento familiar), no meio ambiente (recursos hídricos e saneamento, solos, florestas e biodiversidade) e infra-estrutura (rodovias, energia elétrica e portos). Os países pobres não têm como custear esses investimentos por seus próprios meios, portanto os países ricos precisam ajudar. Se mais ajuda financeira for combinada a boa governança nos países pobres, as Metas de Desenvolvimento para o Milênio poderão ser alcançadas em tempo. O novo relatório é um convite à ação. Os países ricos e pobres precisam unir forças para reduzir a pobreza, a doença e a fome. O motivo para as Metas de Desenvolvimento para o Milênio serem viáveis é que as poderosas tecnologias existentes nos dão as ferramentas necessárias para promover rápidos avanços na qualidade de vida e na produtividade econômica dos pobres do mundo. Enfermidades e mortes por malária podem ser bastante reduzidas por meio do uso de mosquiteiros tratados com inseticidas para deter os mosquitos transmissores da malária, e também por meio de medicamentos eficazes para quando a doença atacar. O custo do combate à malária na África ficaria em torno de US$ 2 bilhões a US$ 3 bilhões ao ano.

Cinco países europeus já cumprem a promessa de doar 0,7% da renda nacional. EUA e do Japão ainda precisam ser coerentes com o compromisso

Com uma população de perto de um bilhão de habitantes vivendo em países de alta renda, custaria apenas US$ 2 a US$ 3 por pessoa, por ano, financiar um esforço que poderá salvar mais de um milhão de crianças anualmente. Quando a mortalidade infantil for reduzida, as famílias pobres optarão por ter menos filhos, pois estarão mais confiantes de que seus filhos sobreviverão até a idade adulta. Assim, de forma paradoxal, salvar a vida das crianças é parte da solução para o crescimento populacional acelerado nos países pobres. A malária é um exemplo importante de como investimentos específicos podem resolver os problemas de doença, fome e pobreza extremas. O relatório faz dezenas de recomendações práticas dessa espécie. Investimentos em nutrientes de solo e na prospecção de recursos hídricos poderão ajudar os agricultores africanos a dobrar ou triplicar a sua produção de alimentos. Remédios anti-retrovirais podem ajudar a salvar milhões da morte relacionada à Aids. Estradas rurais, transporte por caminhões e eletricidade poderão trazer novas oportunidades a aldeias longínquas na América Latina, África e Ásia. Programas de refeição escolar, que usam alimentos produzidos localmente, poderão estimular a freqüência de crianças pobres, especialmente meninas, e melhorar a capacidade de aprender, oferecendo, ao mesmo tempo, um mercado expandido para agricultores locais. Esses investimentos são uma incrível pechincha. Países ricos têm prometido há muito tempo elevar seus níveis de ajuda para 0,7% da renda nacional (no lugar dos cerca de 0,25% hoje). A promessa de 0,7% significa que o mundo rico daria aos países em desenvolvimento meros 70 centavos de cada US$ 100 de renda nacional. Em semanas recentes, muitos países europeus se comprometeram a honrar a promessa de 0,7%, e cinco países europeus, (Dinamarca, Luxemburgo, Holanda, Noruega e Suécia) já a cumprem. Depende dos EUA e do Japão também serem coerentes com suas promessas. Além disso, com a "democratização" da ajuda agora em curso, podemos esperar por uma elevação de esforços privados, juntamente com a assistência oficial para o desenvolvimento. Naturalmente, nem todos os países em desenvolvimento são suficientemente bem governados para usar um aumento na ajuda de forma honesta e eficaz. O mundo deve, pois, dar início a esse esforço ousado, concentrando-se nos países pobres que são relativamente bem governados, e que estejam preparados para implementar os investimentos necessários de uma forma eficiente e justa. Gana, Senegal, Quênia e a Etiópia estão nessa lista. Urge que comecemos neles e em países pobres similarmente bem governados, neste ano.