Título: Enxugando gelo
Autor: Maria Clara R. M. do Prado
Fonte: Valor Econômico, 03/02/2005, Opinião, p. A13

Importantes fatos relacionados à política monetária - e, por decorrência, ao que lhe está afeto -- não têm chamado a atenção que merecem. Permanece o debate girando em torno dos aspectos mais aparentes, e por isso mesmo simplistas, como o nível da taxa de juros e o movimento de valorização da moeda nacional em face do dólar americano, sem que se entenda o que o rabo tem a ver com as calças. Ocorre que tem a ver, e muito. Ambos os temas estão diretamente relacionados e dependem fundamentalmente da atuação do Banco Central. Há fatores externos que também influenciam o preço da moeda nacional, mas também nessa esfera é obrigação do BC saber enxergar e dimensionar aqueles efeitos. Não se vai aqui entrar no mérito do recente movimento do Copom, quando elevou, em 19 de janeiro, a taxa Selic para 18,25%, e nem nos termos um tanto exagerados da ata que perpetua em horizonte significativo a perspectiva de novos aumentos de juros, nos termos daquele pai que, do alto de sua autoridade, acha que tem o dever de agir à base de ameaças. A sociedade brasileira saberá julgar, com o tempo, se o ímpeto "impositivo" do BC terá sido justificável. O relevante, por ora, é tentar entender o comportamento da taxa de câmbio, sua relação com os juros e os movimentos do BC no sentido de tentar brecar a valorização do real face ao dólar. De pronto, sabe-se que a alta dos juros internamente tende a valorizar a moeda nacional na medida em que atrai mais capital de fora. Essa é uma relação básica. O BC desde dezembro passado tem tomado a decisão correta para o momento que se atravessa, interna e externamente, ao realizar sucessivas intervenções no mercado de câmbio. Já adquiriu cerca de US$ 5,2 bilhões. Isso sem dúvida agrega às reservas internacionais do país, mas não tem surtido efeito de aplacar a tendência de apreciação do real. Alguns notariam que esse movimento já era esperado tendo em vista a queda generalizada do valor do dólar no mercado internacional. Sem dúvida, mas ganha no Brasil tons um tanto mais fortes pelo impacto que a alta dos juros tem sobre a entrada do capital estrangeiro. Isso é particularmente expressivo no movimento dos exportadores que, como se sabe, ganham fartos rendimentos sobre as aplicações em reais dos dólares que antecipam em suas operações de fechamento de câmbio. Esse "benefício" escamoteia o efetivo prejuízo que a valorização do real possa ter para os exportadores. É justamente dessa fonte, das exportações, que tem ingressado boa parte dos dólares ingressados no país, nos últimos meses. Ajudado, diga-se, pelo maior fluxo de investimentos estrangeiros. Parte dessa afluência de dólares é explicada por outros fatores externos como o persistente crescimento da economia internacional, a queda do risco dos chamados "emergentes", a expectativa de que os juros externos se mantenham baixos em termos reais, enfim... O BC brasileiro está obviamente acompanhando isso tudo de perto.

O BC está "comprando" o risco de maior desvalorização do dólar no mercado futuro na tentativa de brecar as vendas no mercado à vista

É dentro dessa moldura complexa que se deve encaixar a medida anunciada no final da tarde de terça-feira, pela qual o BC comunicou sua decisão de atuar no mercado futuro através de leilões de venda de contratos de "swap" pelos quais garantirá a variação da taxa de juros contra a variação da taxa de câmbio. Em resumo, o BC está "comprando" o risco de maior desvalorização do dólar no mercado futuro na tentativa de brecar as operações de venda da moeda americana por parte dos bancos no mercado à vista. O sucesso da operação, conforme avaliam os analistas, vai depender da quantidade e do valor das operações, e o impacto que isso terá os mercados futuros de câmbio e, conseqüentemente, no mercado à vista. Se há uma expectativa de manutenção ou até de piora da desvalorização do dólar no médio e no longo prazo - onde estão sendo jogados os dólares ingressados no país - isso se reflete no curto prazo, porque os bancos, apostando na tendência de queda maior do dólar no futuro, acabam desovando a moeda americana no mercado à vista, reforçando assim a perspectiva de valorização do real. "A recente atitude do Banco Central com o 'swap' é compatível com as circunstâncias, porque procura atenuar a volatilidade para baixo do câmbio", avalia Roberto Padovani, da Consultoria Tendências. Com a operação de "swap", os bancos passariam a desovar os dólares não mais no mercado, mas diretamente junto ao Banco Central. Isso tende a tornar os juros sobre o dólar menos atrativos e arrefecer, assim, o ritmo do ingresso de dólares no país no curto prazo. Seria, na prática, uma forma de desestimular um pouco o benefício que o aumento dos juros tem para os exportadores: o real se desvalorizaria no mercado à vista, influenciando no sentido de uma valorização do dólar no futuro e desestimulando, assim, a antecipação das operações de câmbio por parte dos exportadores ou de outros interessados em trazer dólares para aplicar nos elevados juros pagos em reais. Só para se ter uma idéia do valor em potencial envolvido basta ter em mente que até o final de janeiro os bancos detinham no futuro posições compradas envolvendo cerca de US$ 3 bilhões (bem acima da média de cerca de US$ 1 bilhão), e que esse é o montante, em tese, passível de não ser mais desovado no mercado à vista. Bem, tudo isso decorre do fato de o BC não apenas ter puxado a taxa Selic ainda mais para cima, mas de ter sinalizado novas altas. É como se o BC colocasse lenha na fogueira, acionando o botão de estímulo à valorização da moeda nacional. É como se dissesse: "vamos ajudar a empurrar o valor do dólar ladeira abaixo!" Isso, diga-se, em uma situação de "desprezo" pela moeda americana mundo afora. Na prática, a decisão recente do BC de "comprar" as posições futuras dos bancos em câmbio é uma forma de enxugar gelo. Ou seja, de evitar que o real entre em uma espiral crescente de valorizações como, aliás, era de se esperar a partir das afirmações e expectativas lançadas pelo próprio BC com respeito à evolução dos juros nos próximos meses.