Título: Decisão da Justiça ameaça AmBev
Autor: Goulart, Josette
Fonte: Valor Econômico, 19/10/2007, Legislação & Tributos, p. E1

O desembargador Antonio Eduardo Duarte, do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (TJRJ), tirou o sono dos administradores da AmBev. Um voto contundente e agressivo, que questiona até mesmo a Comissão de Valores Mobiliários (CVM), levou a empresa a um revés em uma causa estimada em US$ 500 milhões que contrapõe interesses de investidores de grande porte e sócios majoritários da empresa. Um batalhão de advogados contratados pela AmBev tenta agora reverter a decisão para evitar que os fundos de pensão Previ e Funcef, o fundo de investimentos Tempo Capital e a empresa Romanche Investments, dos ex-donos do Banco Pactual, possam aumentar sua participação na empresa por meio de uma subscrição de bônus vencida há quatro anos.

Se a decisão prevalecer, os problemas da companhia começam de fato: haveria uma diluição de capital que, embora pequena, afeta a participação de seus acionistas. Isto pode abrir margem para que ela seja questionada pelos minoritários na Justiça e ainda seja obrigada a rever decisões tomadas nos últimos quatro anos - ou então a pagar milhões em indenizações. A confirmação da decisão do tribunal também faria com que novos acionistas minoritários passassem a ter ações ordinárias, com direito a voto na companhia. Desde que os belgas da Interbrew assumiram a AmBev, minoritários só detém ações preferenciais.

A desavença surgiu a partir de uma cláusula de ajuste de preço que constava nos bônus de subscrição. Ela diz que, se houvesse aumento de capital público ou privado entre a data da emissão e a de vencimento, a um preço por ação inferior ao previsto no bônus, valeria este menor preço na subscrição, que aconteceria em 2003. Mas, às vésperas da subscrição, a companhia comunicou ao mercado que o aumento de capital feito pelo plano de opção de compra dos funcionários não seria levado em consideração - e a briga judicial começou.

Os bônus de subscrição funcionam como uma opção futura de compra de ações. Em 1996, a então Cervejaria Brahma emitiu 404 milhões de unidades de títulos deste tipo e, na época, os investidores pagaram R$ 50,00 o lote de mil ações. Com os títulos em mãos, teriam direito a comprar, no mês de abril de 2003, lotes de ações ordinárias e preferenciais da companhia ao preço de R$ 1 mil - corrigido pelo IGPM mais 12% ao ano ao longo do período. Este preço foi alterado para R$ 200,00 em 2000, com a fusão entre Brahma e Antarctica - como as ações foram divididas em cinco, o valor foi reduzido. O título passou a ser um bônus da AmBev, mas com as mesmas características do bônus emitido em 1996.

Entre 2001 e 2002, os bônus começaram a ter uma grande comercialização no mercado secundário de títulos. Os compradores acreditavam que eles valiam a pena porque houve uma série de aumentos de capital na companhia, entre eles a subscrição de outro lote de bônus emitidos em 1993 e que venceram em 1996. Em um outro aumento de capital, em 1999, o preço da subscrição seria reduzido para menos de R$ 200,00 já corrigido. Para se ter uma idéia do bom negócio, na época do vencimento da subscrição, em 2003, os papéis da Ambev eram negociados em torno de R$ 400,00 a R$ 500,00 o lote de mil ações.

Mas, em novembro de 2002, a AmBev divulgou um fato relevante que dizia que o preço da subscrição prevista para abril do ano seguinte não seria ajustado com base em aumentos de capital feitos pelo plano de opção de compra dos funcionários - justamente o tipo de aumento de capital ocorrido em 1999. A companhia entendeu que este era um aumento de capital de natureza especial e que, por isto, não poderia ser considerado como parâmetro para o ajuste de preços. O plano de opção de compra dos funcionários da Brahma foi criado no início da década de 90. Nestes planos, os preços das ações são muito mais atrativos do que os de mercado - uma forma de dar algum tipo de recompensa financeira aos funcionários. Sempre que eles exercem seus direitos de compra, a companhia emite novas ações e, com isso, aumenta seu capital. As regras desse tipo de incentivo são criadas pelo corpo administrativo da empresa.

Para estabelecer o valor da subscrição iminente, a empresa foi à Comissão de Valores Mobiliários (CVM) pedir um parecer sobre que tipos de aumento de capital deveriam ser considerados na formação do preço. A procuradoria jurídica da CVM entendeu que, pelo texto da cláusula, todos os aumentos de capital do plano de opção de compra deveriam ser levados em consideração. Outros dois pareceres - da superintendência de acompanhamento de empresas e da gerência de empresas da CVM - também entenderam da mesma forma. A AmBev recorreu ao colegiado e, com base na decisão da diretoria da CVM, estabeleceu o preço.

O colegiado da CVM discordou da área técnica e deu razão à AmBev (veja matéria abaixo) e, no dia anterior ao início do prazo de subscrição, em 31 março de 2003, divulgou sua decisão. Com isso, a companhia estabeleceu o preço da subscrição em R$ 915,00 para o lote de mil ações ordinárias e em R$ 909,00 o lote de preferenciais. Chegou-se a este valor, corrigindo pelo IGPM o preço de R$ 200,00 da época da fusão Brahma/Antarctica e mais 12% ao ano. Neste patamar, as opções de compra de ações da AmBev viraram pó.

Os investidores amargaram um grande prejuízo por terem comprado bônus com ágio no mercado secundário e correram à Justiça. Foi então que começou a busca por motivos que tenham levado os três grandes mitos do mercado financeiro - Jorge Paulo Lemann, Marcel Telles e Carlos Alberto Sicupira, que comandavam e ainda comandam a AmBev - a insistir neste patamar de preço de subscrição, mesmo com pareceres técnicos da CVM em prol da legalidade do ajuste de um preço inferior. Este preço inferior era também interessante para eles, já que detinham pelo menos 20% do total de bônus emitidos e, como os demais, também amargaram prejuízos. E os lucros podiam chegar, segundo dados do processo aberto na CVM, a 3.200%, em valores nominais.

Na visão dos demais investidores, é inadmissível que os três tenham perdido dinheiro desta forma sem uma boa razão e, segundo confirmou a perícia feita pelo tribunal do Rio, o corpo executivo da empresa manteve os títulos em seu poder até às vésperas do vencimento, em 2003. A razão, segundo eles, pode estar na negociação com os belgas. O mercado foi unânime ao considerar o negócio com a Interbrew uma tacada de mestre. O trio vendeu a AmBev para os belgas, criando a maior cervejaria do mundo. Embolsaram, segundo estimativas do mercado, mais de US$ 4 bilhões e ainda se mantiveram no comando administrativo da empresa. A negociação começou no fim de 2002. Foi também neste ano que estourou o escândalo de fraude contábil na Enron, que tornou a Security Exchange Commission (SEC) extremamente rigorosa. Segundo os investidores, isto poderia ser um problema se o trio subscrevesse os bônus: eles correriam o risco de investigação por "insider" na SEC, o que afetaria afetar a credibilidade dos executivos perante os belgas.

A investigação poderia ocorrer, segundo apuraram os investidores, porque a direção da companhia sabe exatamente qual é o preço que os funcionários podem exercer na opção de compra do plano feito na década de 90 para incentivar os funcionários. Ou seja, se permitissem que o aumento de capital decorrente do plano alterasse o preço dos bônus, não poderiam subscrevê-los impunemente. De acordo com informações passada à CVM na época do processo, o total dos bônus de subscrição aumentaria em 4,5% o número de ações da companhia, sendo que metade disto estava nas mãos da direção e de conselheiros. Além disso, foi em 2002 que o trio Lemann/Telles/Sicupira conseguiu se livrar do processo administrativo por "insider information" que corria na CVM ao assinarem um termo de compromisso com a autarquia. Eles eram investigados por uso de informação privilegiada na compra de ações da Brahma, da Antarctica e bônus de subscrição da Brahma às vésperas da fusão. Os títulos foram comprados pela Braco, pertencente aos três.

Procurada pelo Valor, a AmBev não quis comentar o assunto. Nas informações passadas anualmente à SEC, a disputa com os bônus de subscrição foi informada, mas estas informações não foram repassadas à CVM. A empresa informou apenas, por meio de sua assessoria de imprensa, que não comenta casos que estejam "sub judice".