Título: Crise põe em xeque status do dólar como reserva
Autor:
Fonte: Valor Econômico, 03/12/2007, Crise põe em xeque status do dólar como reserva, p. C6

O valor de todo papel-moeda no longo prazo é zero. A frase é de Bill Bonner, investidor e publisher da "Daily Reckoning", uma newsletter financeira contestatória. Então, por que deveria ser diferente com o dólar?

A moeda dos Estados Unidos foi infectada pela percepção de crise que está atormentando a economia do país e os mercados financeiros. As vendas especulativas de dólar estão perto do nível histórico mais alto, segundo calcula Stephen Jen, do Morgan Stanley. Muitos acreditam - e evidentemente alguns esperam - que o dólar pode estar com os dias contados enquanto moeda internacional. Paralelos preocupantes são vistos entre a queda recente do dólar e o declínio da libra esterlina como moeda de reserva meio século atrás.

O valor do dólar em relação à cesta das principais moedas do mundo, monitorada pelo Federal Reserve (Fed), atingiu recentemente o menor nível histórico. Contra um grupo maior de moedas, o dólar perdeu um quarto de seu valor nos últimos cinco anos. Seu declínio tem sido especialmente notável contra o euro. A certa altura de 2000, o euro era avaliado em 86 centavos de dólar; hoje ele compra US$ 1,48.

Não é nada incomum que moedas ganhem e percam valor, testando recordes. O que dá à queda do dólar um ar de crise é o fato das reservas cambiais mundiais estarem abarrotadas de ativos em dólar que estão se depreciando. Os estoques cambiais quase triplicaram para US$ 5,7 trilhões desde o começo da década. A China tem, sozinha, US$ 1,4 trilhão em reservas. Os cerca de US$ 1 trilhão colocam o Japão logo em seguida.

Nesse período de reservas inchadas, o dólar vem mantendo sua primazia. Ele ainda responde por perto de 65% das reservas cambiais identificáveis, segundo os dados mais recentes do Fundo Monetário Internacional (FMI). Isso está dentro de sua participação histórica. Computando-se os dólares acumulados pela China e os países exportadores de petróleo do Oriente Médio (não incluídos no cálculo do FMI), a participação do dólar pode ser ainda maior.

O lugar do dólar como moeda de reserva sempre é questionado quando ele cai. Os períodos de fraqueza de 1977 a 1979, 1985 a 1988 e 1993 a 1995 sempre foram cheios de previsões de que os governos iriam trocar suas reservas para outras moedas. Um período de inflação alta, que afetou o dólar no fim dos anos 1970, tornou essa queda tão grave quanto o susto do momento. Entre 1978 e 1980, o Tesouro dos Estados Unidos vendeu US$ 6,4 bilhões em "Carter bonds", denominados principalmente em marcos alemães, para levantar recursos para defender o dólar. Em janeiro de 1980, o preço do ouro atingiu o recorde de US$ 835 (aproximadamente US$ 2.250 em valores atuais) por causa da grande procura dos investidores por uma alternativa ao dólar. E quando o dólar caiu para 81 ienes em 1995, muitos - incluindo a "The Economist" - viram o acontecimento como o começo do fim de seu status de moeda de reserva.

O dólar atravessou essas tempestades. Mas agora ele enfrenta uma tormenta feia que combina rajadas cíclicas e estruturais. Seu declínio nos últimos cinco anos impôs uma perda de capital enorme às reservas internacionais. Se isso ficar doloroso demais, bancos centrais poderão ser ver tentados a eliminar suas perdas e se desfazerem de seus dólares, provocando um colapso no valor da moeda. A vontade de vender é ainda maior pois eles sabem que outros bancos centrais também estão carregados de dólares. Aqueles que saírem primeiro das posições terão mais chances de salvar seu capital.

A necessidade que os Estados Unidos têm de financiamentos internacionais também é outro motivo a ser considerado. Há anos o país vem gastando mais do que ganha, mantendo grandes e persistentes déficits em conta corrente. No ano passado, o déficit americano foi de surpreendentes 6% do PIB. Para o país cobrir esse rombo, os investidores estrangeiros precisam comprar ativos em dólar - bônus, ações ou imóveis. Mas quanto maior a dívida internacional dos EUA, maior o risco de que o país venha a dar calote em parte de suas obrigações, seja através da fraqueza do dólar ou da inflação.

Essas vulnerabilidades não são novas, mas foram agravadas por uma economia que está azedando. As perdas com hipotecas subprime intensificaram a queda do setor imobiliário dos EUA e envenenaram seus mercados de crédito. A ameaça de recessão já levou a dois cortes nas taxas de juros e mais reduções devem ocorrer. O fraco crescimento e a queda dos juros contribuem para uma moeda fraca, especialmente quando as perspectivas de crescimento em outras partes do mundo parecem melhores.

A retração dos EUA também apresenta outros problemas. Os países do Golfo Pérsico, ricos em petróleo, estão pensando em abandonar a âncora cambial ao dólar. Esses laços vêm obrigando esses países a comprar dólares, para impedir a valorização de suas próprias moedas. A âncora ao dólar têm dificultado o controle da inflação, especialmente nos países ricos em petróleo, que estão crescendo rapidamente, enquanto um regime cambial menos rígido - digamos, uma âncora a uma cesta de moedas - poderia permitir uma política de juros mais flexível. Tal regime também afetaria a demanda por dólares num momento em que a confiança na moeda está fragilizada. Tudo isso pode não ser um bom prenúncio para o status do dólar como moeda de reserva por excelência.

Mas mesmo que este seja um período complicado para a moeda, ele não chega a ser catastrófico. O temor de que o dólar venha a ser suplantado rapidamente como principal moeda, é baseado na idéia de que uma moeda sempre será um quase monopólio: se uma pessoa tem dólares principalmente porque outra tem, pode-se imaginar como uma queda de participação nas reservas mundiais pode chegar ao ponto em que os bancos centrais subitamente mudarão para um novo padrão cambial.

A posição de destaque do dólar no comércio internacional deve-se sobretudo e esse tipo de efeito de rede. Os mercados mundiais de commodities têm seus preços estabelecidos quase que exclusivamente em dólares porque isso é conveniente para os compradores e vendedores. Mas os países exportadores de petróleo não conseguiriam mais receitas se os preços das commodities fossem estabelecidos em euros ou libras. As pressões competitivas de demanda e oferta estabelecem o preço do petróleo: o dólar é apenas uma maneira fácil de acompanhar os resultados. A convenção da cotação em dólar é sempre empregada quando a moeda de um ou mais parceiros comerciais não é usada. Uma vez estabelecido esse padrão, há custos para a mudança para um novo. Mas os benefícios que os EUA têm por emitirem a moeda favorita nas transações comerciais são facilmente exagerados. Os avanços na tecnologia financeira significam que um certo volume de comércio exige flutuação do dólar muito menor do que no passado.

O papel do dólar enquanto meio de troca internacional é totalmente diferente de seu papel enquanto moeda de reserva. As reservas são mantidas para sustentar a confiança na própria moeda de um determinado país, e não como uma bóia para o comércio mundial. Enquanto barreira, as reservas precisam ser facilmente conversíveis (para que possam ser usadas como uma fonte de liquidez de emergência) e um bom estoque de valor. O dólar, com seus mercados de capitais grandes e cheios de liquidez, atende o primeiro critério, mesmo que tenha falhado no segundo - pelo menos recentemente.

Barry Eichengreen, professor de economia da Universidade da Califórnia em Berkeley, afirma que não há razão para uma única moeda dominar as reservas, como acontece com o dólar. Antes da era do padrão dólar, observa ele, as reservas eram formadas em um punhado de moedas. Às vésperas da Primeira Guerra Mundial, quando o Reino Unido era a maior potência comercial do mundo, a participação de libra nas reservas oficiais era igualada pela participação combinada do franco e do marco alemão. Depois da guerra, uma divisão de três vias foi mantida, com o dólar substituindo o marco.

Se o domínio do dólar acabar, duas ou mais moedas provavelmente dividirão a coroa. Há quem aposta no yuan chinês como uma grande moeda de reserva do futuro. Mas o rival imediato é o euro. Em vários aspectos importantes - o tamanho da área do euro, a sofisticação de seus mercados de capitais e sua participação no comércio mundial - ele possui os atributos da moeda de reserva ideal. Ao contrário dos EUA, a zona do euro tem um atrativo adicional: uma conta corrente bastante equilibrada.

O euro já fez incursões no território do dólar. Em seu lançamento, em 1999, suas moedas constituintes - o marco, o franco, a lira, etc. - respondiam por menos de um quinto das reservas mundiais oficiais. Desde então, sua participação aumentou para cerca de um quarto, mesmo tendo o total das reservas cambiais inflado. A área do euro depende menos que os EUA das importações de petróleo e vende mais para países exportadores, além de economias em crescimento acelerado como a China e o Brasil.

Os atrativos do euro podem estar de certa forma um pouco acentuados no momento. Ele vem ganhando valor rapidamente, favorecido pelas forças cíclicas que o vem beneficiando em detrimento do dólar. Mas apenas um ano atrás, a economia claudicante da Itália e problemas fiscais inspiravam conversas sobre um fim do euro. Apenas cinco anos atrás o euro era considerado irremediavelmente fraco.

Mas embora as perspectivas de curto prazo pareçam favoráveis ao euro, o cenário de médio prazo pode não ser tão animador. A valorização do euro já está provocando tensões dentro da zona do euro. Nas próximas décadas, a força de trabalho da zona do euro deverá envelhecer mais rapidamente que a dos EUA, o que vai prejudicar a economia e contribuir para as pressões fiscais.

Apesar da ansiedade e do pessimismo, há sinais de que o declínio do dólar poderá em breve ter o ritmo reduzido. Nas últimas semanas ele reconquistou terreno contra um punhado de moedas importantes, incluindo libra e dólar australiano. A balança comercial dos EUA está encolhendo, apesar dos efeitos das importações de petróleo caras, sugerindo que uma moeda mais fraca já está trabalhando para corrigir desequilíbrios.

Via de regra, os bancos centrais não podem interferir para determinar as taxas de câmbio, mas conforme sugere Stephen Jerns, do Morgan Stanley, algum tipo de ação oficial sempre precedeu os pontos de virada nos mercados cambiais mundiais. Se ele estiver certo, então uma mudança na retórica ou mesmo uma intervenção coordenada poderão ser o sinal de que os mercados precisam, antes de deixarem de acreditar que o dólar está destinado a cair ainda mais.