Título: A nova lei processual e a execução fiscal
Autor: Scaff, Fernando Facury
Fonte: Valor Econômico, 29/11/2007, Legislação & Tributos, p. E2

O noticiário dá conta do surgimento de uma nova tese jurídica concebida pela Procuradoria Geral da Fazenda Nacional (PGFN) e que começa a ganhar os primeiros adeptos no Poder Judiciário: a defesa dos contribuintes em execuções fiscais não mais seria capaz de suspender o curso dos atos executórios sobre o bem dado em garantia. Primeiro se liquidaria o patrimônio do contribuinte para somente depois verificar se suas alegações são procedentes.

O argumento central do entendimento é baseado na Lei nº 11.382, de 2006, que alterou o Código de Processo Civil (CPC) quanto às execuções de título extrajudicial para conferir-lhe maior efetividade. Considerando que a Lei de Execuções Fiscais nada regula sobre o assunto, seriam aplicáveis as disposições do CPC ao procedimento de execução fiscal - esta é a tese fazendária.

Entretanto, acredita-se não ser exata tal tese. O uso da hermenêutica permitirá compreender a especificidade da relação jurídica subjacente e constatar que é superficial o entendimento que faz equiparar as duas situações, extinguindo o efeito suspensivo dos embargos à execução fiscal.

A legislação distingue entre execuções fiscais e as demais execuções afetas à jurisdição civil quando institui procedimentos diferentes para as distintas relações jurídicas, na medida em que são diferentes as relações entre credor e devedor nos domínios civil e fiscal, bem como a dos títulos executivos decorrentes. A relação tributária não se afigura uma relação entre partes iguais, tal como as relações civis. Há um evidente desequilíbrio em favor do fisco na relação, decorrente de sua vinculação ao interesse público. E diante desta prerrogativa, instituem-se leis e subjuga-se o cidadão ao seu adimplemento.

-------------------------------------------------------------------------------- A relação tributária não é uma relação entre partes iguais, como as relações civis: há um evidente desequilíbrio --------------------------------------------------------------------------------

Esta desigualdade se reflete na forma de constituição dos créditos. Os títulos executivos extrajudiciais que ensejam a execução civil são, em regra, oriundos de acordos entre iguais, onde o próprio devedor chancela a existência do débito e sua condição de exeqüibilidade. Por mais que a constituição do título executivo fiscal seja precedida de um processo administrativo com a participação do devedor, não se afigura o mesmo. O resultado do processo administrativo fiscal decorre de uma interpretação da legislação por parte de um interessado, mesmo que o contribuinte tenha direito de defesa e sejam representados minoritariamente nos órgãos julgadores administrativos. Tanto o fiscal que lança o tributo quanto, por exemplo, o procurador que atua judicialmente em favor do fisco, interpretam o direito partindo da mesma matriz exegética: ambos agem em nome do interesse público secundário, entendendo o direito conforme seja mais vantajoso para o Estado.

Observe-se bem: o argumento não duvida em momento algum da idoneidade dos agentes públicos envolvidos no aparelho de arrecadação do Estado. Apenas se salienta que desempenham suas funções com uma parcialidade jurídica inafastável, identificada em diversas situações no desempenho de sua função. Nos órgãos julgadores administrativos não atuam de maneira eqüidistante das partes, por serem também parte nos processos que julgam, em estreita colaboração com os representantes dos contribuintes - estes em composição minoritária.

Um exemplo cotidiano dessa afirmação é a impossibilidade alegada pelo próprio fisco de limitação à "estrita legalidade" nos processos administrativos de sua competência. Aduz-se que a atividade administrativa desempenhada estaria vinculada aos termos da legislação tributária e interna dos órgãos, negando-se à análise dos aspectos constitucionais, sejam ou não favoráveis aos contribuintes. Apenas este aspecto - a negativa de análise de matéria constitucional em um país onde grande parte do direito tributário encontra-se constitucionalizado - seria suficiente para demonstrar a fragilidade de se atribuir aos títulos executivos que decorrem deste processo o mesmo status que se atribui aos que são formalizados de maneira bilateral, entre entes privados.

Apesar de a lei designar a interpretação do fisco suficiente para constituir título executivo, não se pode ignorar a distância gigantesca entre as duas formas de constituição do crédito e suas diferentes repercussões quanto ao efeito suspensivo. Considerando o desequilíbrio existente na relação fisco-contribuinte na formação do título executivo decorrente dessa relação, a suspensão dos embargos à execução fiscal deve ser a regra, e não a exceção. Somente assim o sistema dará uma resposta equilibrada às diferenças entre as partes e impedirá o contribuinte de ver seu patrimônio alienado por um crédito decorrente de uma interpretação parcial efetuada a margem de qualquer análise constitucional.

Some-se a este aspecto outras novidades que se apresentam na relação fisco-contribuintes, tal como a penhora on-line, e teremos uma situação extremamente perversa, onde o fisco poderá retirar o dinheiro do contribuinte diretamente de sua conta corrente, sem que ele tenha direito à efetiva defesa. É a implantação do odioso "solve et repete" que já havia sido expurgado de nosso sistema jurídico há várias décadas, mas que retorna sob outras vestes. E tudo à margem da Constituição que, em seu nascimento, foi batizada de cidadã. O Judiciário, por certo, não chancelará a interpretação fiscalista que vem sendo divulgada.

Fernando Facury Scaff e Daniel Coutinho da Silveira são, respectivamente, sócio e advogado do escritório Silveira, Athias, Soriano de Mello, Guimarães, Pinheiro & Scaff - Advogados

Este artigo reflete as opiniões do autor, e não do jornal Valor Econômico. O jornal não se responsabiliza e nem pode ser responsabilizado pelas informações acima ou por prejuízos de qualquer natureza em decorrência do uso dessas informações