Título: A CPMF e a tributação justa
Autor:
Fonte: Valor Econômico, 04/12/2007, Opinião, p. A18

A polêmica infindável sobre a prorrogação da CPMF tem produzido muito calor e pouca luz. A disputa eminentemente partidária prejudica uma discussão mais racional e objetiva. Propomo-nos a tentar contribuir com alguns argumentos ainda pouco abordados sobre o problema e, assim, propor alternativas.

Um falso argumento usado para defender a extinção da CPMF é que a carga tributária brasileira já é muito alta. Ela é alta, de fato, mas não é producente extinguir apenas um imposto, se o objetivo é reduzir a carga total, sob o risco de privilegiar os agentes ligados aos fatos geradores isentados, em detrimento dos demais contribuintes. Um bom sistema tributário tem que contar com ampla base de fatos geradores para que nenhuma atividade econômica venha a servir de "paraíso fiscal", fonte de distorções e ineficiências na alocação de recursos pelos agentes econômicos. A CPMF tem como vantagem atingir grande parte da informalidade, não alcançável por outros impostos, e, por isso, poderia ser utilizada também como estímulo à formalização das atividades econômicas. Para tanto, em vez de reduzir sua alíquota, pode-se desenhar um sistema com alíquotas maiores, mas com possibilidade de abater o que foi recolhido da contribuição do que é devido de outros impostos, taxas, contribuições e encargos previdenciários.

Deve-se buscar reduzir a carga tributária com ampliação da base de tributação, o que a CPMF cumpre melhor do que qualquer outro imposto, e com a redução de alíquotas de todos os impostos simultaneamente, sem privilégios a nenhum contribuinte.

Com relação às vantagens operacionais, a CPMF é o imposto com menor custo de arrecadação e aquele que contribui com a fiscalização e detecção de movimentações financeiras incompatíveis com a renda declarada pelo contribuinte. Um aspecto muito pouco discutido em relação à CPMF é que ela permite, ainda que de forma imperfeita, a taxação de um ativo que, antes de sua implementação, não era taxado: a posse de moeda. Tecnicamente, moeda é um ativo que tem liquidez absoluta, mas não proporciona nenhum rendimento. Quando a moeda é aplicada num ativo mobiliário, passa a render juros e dividendos, mas tem, em contrapartida, menor liquidez. O avanço tecnológico dos mercados financeiros tornou quase indistinta a liquidez da moeda e da maior parte dos ativos financeiros, também chamados de quase-moedas. Na composição da riqueza de pessoas físicas e jurídicas podem constar ativos mobiliários, imobiliários, máquinas, equipamentos, veículos e moeda. Um sistema tributário deveria taxar com equidade a propriedade de todos ou, então, de nenhum destes ativos. O IPTU, ITR e IPVA são impostos sobre a propriedade de ativos. Para fugir destes impostos, um indivíduo pode vender casas, fazendas e automóveis, e manter o mesmo volume de riquezas em moeda e quase-moedas, sem ser alcançado pelo fisco. Seria uma verdadeira elisão fiscal à disposição do contribuinte. Se a posse de moeda ou quase-moedas tivesse algum benefício social, poder-se-ia argumentar em favor dessa elisão. Mas, é óbvio, não há argumentos socialmente aceitáveis para se taxar um fazendeiro e isentar um aplicador financeiro. Observe-se que o fazendeiro é taxado mesmo se tem prejuízo em sua atividade. O detentor de moeda ou quase-moeda só é taxado se estes ativos lhe renderem renda, não pela sua posse. A CPMF tem, portanto, o mérito de tornar o sistema tributário mais justo, ao taxar a propriedade de moeda, que é um ativo tão merecedor de taxação como outro qualquer.

-------------------------------------------------------------------------------- Contribuição permite, ainda que de forma imperfeita, a taxação de um ativo que, antes dela, não era taxado: a moeda --------------------------------------------------------------------------------

O problema central da CPMF, contudo, é que, de fato, ela não é um imposto sobre a propriedade, mas sobre o fluxo monetário que transita na conta bancária de um indivíduo ou empresa, e isso não tem nada a ver com a capacidade de pagamento ou a riqueza do contribuinte. Assim, a CPMF é merecedora de todas as críticas com respeito às distorções que causa na economia, pois é um imposto em cascata, que estimula a verticalização das atividades econômicas; é regressiva, pois tende a taxar mais os que menos podem pagar; e é injusta, pois tem como fato gerador não a renda, mas a posse transitória de recursos financeiros.

A discussão, portanto, não deveria centrar-se na extinção ou permanência da CPMF, mas no melhor aproveitamento do que ela tem de positivo e na correção de suas distorções. Ela poderia tornar-se um imposto sobre a propriedade de ativos monetários e quase monetários (uma CPAM), e sua cobrança feita sobre o saldo médio destes ativos, denominados nas Contas Nacionais de M4, que englobam depósitos a vista, títulos do governo, fundos de curto prazo, depósitos em poupança e outros títulos privados. A estes ativos pode-se agregar ouro e outros metais preciosos, que têm fungibilidade equivalente à moeda.

De fato, alguns ajustes e descontos precisariam ser feitos em função da renda dos indivíduos e das operações das empresas. Sabe-se que os agentes econômicos detêm moeda por três motivos básicos: transações, precaução e especulação. A demanda por moeda para transações e precaução diz respeito àquela liquidez necessária para fazer frente às despesas correntes de indivíduos e empresas. Esta parte deveria ser isentada de impostos, pois não faz parte do patrimônio mas do fluxo de caixa necessário à sobrevivência. A moeda guardada para especulação está apenas à espera de uma oportunidade de compra de um ativo de melhor rendimento. É a parte da demanda por moeda sensível à taxa de juros e, portanto, será sensível também à taxação, permitindo a redução das taxas básicas de juros e a melhoria do perfil de vencimentos da dívida pública, caso a posse de títulos de curto prazo seja mais taxada do que os de longo prazo.

Com base nas estatísticas do Banco Central, o volume de M4 está em torno de R$ 1,8 bilhões. Obviamente, a taxação sobre estes ativos resultaria em fuga de capitais destes para outros ativos que, todavia, já são taxados - não haveria elisão. Uma alíquota de 0,3% ao mês sobre a propriedade destes ativos seria compatível com a arrecadação atual da CPMF, cabendo um estudo técnico mais detalhado das autoridades tributárias sobre diferenciais de alíquotas, descontos e compensações. Ressalte-se que a discussão sobre a taxação dos depósitos em poupança não é nova, pois o rendimento da poupança tornou-se uma barreira para a redução da taxa de juros.

Com a mudança do fato gerador, a CPMF deixaria de ter caráter cumulativo e regressivo, permitindo ainda a redução nas taxas de juros e o desestímulo à especulação financeira. Outra vantagem é o de proporcionar justiça frente aos contribuintes detentores de ativos não-monetários. A cobrança do imposto, por outro lado, continuaria tão fácil quanto é hoje. Seria recolhida pelos bancos, com base no saldo de M4, e pelos agentes custeadores de ouro e metais preciosos.

João Pizysieznig Filho é Professor. da Universidade São Judas de São Paulo.