Título: Controle cambial faz surgir na Venezuela o turista de aluguel
Autor: Rittner , Daniel
Fonte: Valor Econômico, 07/12/2007, Internacional, p. A10

Guardando o dinheiro: policial monta guarda diante de imagens ampliadas do bolívar forte, que entra em vigor em janeiro com três zeros a menos que a moeda atual O vendedor autônomo Marco acaba de voltar da sua primeira viagem ao exterior. Foram só três dias, na República Dominicana, mas ele adorou. "Comi bem, tomei sol e ainda vi a casa do Sammy Sosa", diz Marco, 42, sete filhos (que pediu que seu sobrenome não fosse publicado alegando medo das autoridades), morador da periferia de Caracas que é indiferente ao futebol, como boa parte dos venezuelanos, mas se enche de entusiasmo quando fala sobre as jogadas do dominicano Sosa, que é o seu principal ídolo no beisebol mundial. Melhor de tudo: o passeio saiu de graça - tudo pago pelo ex-patrão numa loja de roupas - e ele embolsou US$ 500, além de ter trazido um punhado de dólares ao seu patrocinador.

Sem divisas suficientes para manter o câmbio fixo artificialmente sobrevalorizado, mas resistindo às pressões para depreciar o bolívar por temer seus efeitos inflacionários, o governo de Hugo Chávez impôs severas restrições à saída de moeda estrangeira do país e acabou criando uma nova figura na economia informal da Venezuela, recém-exercida por Marco: a dos "turistas de aluguel". Eles viajam ao exterior com todas as despesas bancadas por gente que precisa de dólares para exercer suas atividades e, no retorno ao país, abastecem seus financiadores com divisas estrangeiras, cada vez mais difíceis de encontrar nas ruas e nos meios financeiros da capital venezuelana, Caracas.

Enquanto o câmbio oficial está fixado em 2.150 bolívares, o dólar pode ser trocado por até 6 mil no mercado paralelo. Essa discrepância fez a Comissão de Administração de Divisas (Cadivi), órgão responsável por autorizar cada operação envolvendo a saída de moeda estrangeira, apertar as regras. Importações têm sido barradas, acentuando o problema de desabastecimento de alguns produtos, já prejudicados pelo rígido controle de preços. A Cadivi também criou duas cotas anuais para cada cada pessoa física, não importa a que classe social pertença, para gastos em dólares no exterior.

Há uma cota de US$ 3 mil para a compra de produtos importados por meio eletrônico, via internet. E outra, de US$ 5 mil, para despesas em viagens internacionais. Para driblar as restrições do governo e a escassez de dólares no mercado, pequenas empresas têm adotado a prática de mandar seus funcionários ao exterior. Da mesma forma, cidadãos de alto poder aquisitivo pagam viagens curtas a pessoas de confiança - geralmente empregados domésticos ou taxistas - para "importar" dólares que serão usados posteriormente em seus passeios mais prolongados na Europa ou nos Estados Unidos.

A lógica é simples. Na saída do país, os turistas de aluguel recebem autorização para carregar o cartão de crédito com US$ 5 mil, ao preço do câmbio oficial, o que totaliza 10,750 milhões de bolívares. Esse dinheiro é sacado no exterior. Nesse tipo de viagem, as despesas costumam ficar entre US$ 1 mil e US$ 1,5 mil, já considerando o transporte aéreo e a estadia. O turista de aluguel também pode ganhar até US$ 500 pelo serviço. Se sobrarem US$ 3 mil, descontados todos os gastos, ele traz de volta ao país um valor que pode ser trocado por até 18 milhões de bolívares no câmbio paralelo. Ou seja, o financiador da viagem tem lucro líquido superior a 7 milhões de bolívares.

Esse tipo de limitação à compra de dólares para viagens ao exterior também vigorou no Brasil, em parte dos anos 80. Os viajantes, durante muitos anos, tinham direito a comprar apenas US$ 1.000. À época, isso também gerou um mercado de viagens ao exterior, com vistas a repatriar a moeda americana para venda no mercado paralelo. Mas nunca atingiu a proporção do que está ocorrendo agora na Venezuela.

A prática se disseminou de tal forma em Caracas que os efeitos econômicos já são percebidos. Em setembro, a venda de passagens aéreas internacionais alcançou US$ 103 milhões, mais do que o dobro do registrado em igual período do ano passado. Não há mais passagens em vôos diretos ao Panamá até janeiro. Aruba, Curaçao e Colômbia são outros destinos bastante procurados para o envio dos turistas de aluguel.

No balanço de pagamentos, o reflexo da compra e venda de cotas também é notado. Em 2006, ano em que a cotação do dólar paralelo ficava em torno de 3.500 bolívares, os gastos com turismo no exterior totalizaram US$ 1,087 bilhão. Em 2007, com a disparada do câmbio no mercado negro, os mesmos gastos atingiram US$ 4 bilhões somente até novembro, segundo Asdrúbal Oliveros, diretor da consultoria venezuelana Ecoanalítica.

"É um quadro preocupante", diz Oliveros, para quem o governo tem mecanismos de forçar a queda do dólar no mercado negro, se não quiser desvalorizar oficialmente o bolívar. Ele recomenda a emissão de títulos para irrigar as finanças de divisas estrangeiras e afirma que "a solução não é punir", em referência às iniciativas tomadas recentemente pela Cadivi para coibir as negociações de cotas.

Recentemente, o órgão intensificou medidas de fiscalização junto a turistas venezuelanos recém-chegados de viagem. Nessas ofensivas, os agentes exigem a apresentação de notas fiscais que comprovem os gastos no exterior. Se a cota não tiver sido inteiramente utilizada e o restante do dinheiro não estiver mais no cartão de crédito, o turista é multado e pode responder a processo. Com isso, passou-se também a forjar recibos e faturas de supostos gastos no exterior.

Isso não assusta nem mesmo gente de classe média, como Humberto, um jovem que trabalha na farmácia dos pais e que já havia passado férias no exterior. Ele se prepara para embarcar para o Panamá, no próximo dia 13, para uma viagem de cinco dias. Prometeram-lhe US$ 600 e todas as despesas pagas - para ele e para outras dez pessoas que viajam no mesmo vôo, além do líder do grupo. Humberto estima que o lucro do financiador ficará acima de 250 milhões de bolívares, com a revenda da sobra dos dólares no marcado paralelo. "Vou fazer uma viagem exploratória", diz Humberto, cheio de planos. "Se der certo, pretendo organizar os meus próprios grupos no ano que vem", completa o venezuelano, que já estava acostumado a vender sua cota anual de compras na internet para uma loja de aparelhos de som para carros.

A falta de dólares na economia venezuelana, paradoxal em um momento de disparada dos preços do petróleo, tem feito o governo atrasar a liberação de pedidos de importação, segundo empresários locais. Totalmente dependente da exportação de petróleo, a Venezuela tem uma economia pouco diversificada e traz do exterior boa parte dos bens de consumo industriais. Enquanto a falta de leite e de açúcar nos supermercados afeta a popularidade de Chávez junto à população mais pobre, outros tipos de desabastecimento corroem ainda mais sua imagem junto à classe média.

Os jornais relatam que cresceu o roubo de peruas Hummer, bastante comuns no trânsito de Caracas, para "canibalização" de peças - as partes originais sumiram das oficinas mecânicas. Nas farmácias, é real a perspectiva de falta de remédios nos próximos meses, segundo Edgar Salas, presidente da Federação Farmacêutica Venezuelana. Ele afirma que a Cadivi vem mudando "constante e discricionariamente" seus pedidos de documentação às empresas do setor, a fim de atrasar as liberações de produtos importados, essenciais para a composição de medicamentos.

O problema torna-se ainda maior porque a Venezuela não tem uma única fábrica de matéria-prima farmacêutica. "A indústria entra em férias coletivas no dia 20 de dezembro e só volta em janeiro", preocupa-se Salas. De acordo com o empresário, já faltam remédios para diabetes e a tendência é de agravamento da situação, após a derrota de Chávez no último domingo. No início do ano, ele diz que chegaram a faltar 45% dos medicamentos normalmente vendidos no país. "Isso só foi melhorar nos meses anteriores ao referendo."