Título: Chavismo prepara ofensiva, mas ajuda social perdeu fôlego
Autor: Rittner , Daniel
Fonte: Valor Econômico, 11/12/2007, Internacional, p. A10

Cai uma chuva fina em Petare, bairro no extremo leste de Caracas que reúne o maior conjunto de favelas da Venezuela. Enquanto o lixo escorre vagarosamente pelos morros, líderes comunitários discutem, perto de onde uma Igreja Universal do Reino de Deus convida os pedestres para o culto, o que deu errado. Petare, reduto onde o presidente Hugo Chávez sempre obteve vitórias folgadas em todas as eleições, desta vez lhe amargou uma derrota com 60% dos votos ao "não" pela reforma constitucional.

Petare mudou de lado? "As pessoas se mantêm com o presidente, mas algumas acharam que já havíamos ganhado, outras acreditaram que o governo tiraria seus filhos para mandá-los a Cuba, e não foram votar", argumenta Miguelina Araújo, chavista convicta, que atribui a derrota à abstenção de 44% dos eleitores e direciona suas críticas à emissora de TV Globovisión, única abertamente de oposição após a retirada do ar da RCTV.

Chávez deixará o cargo em 2013? "Isso é o que veremos", responde, incrédulo, Rafael Abello, de 36 anos. "Perdeu-se a batalha, mas não a guerra. Vamos fazer até o impossível para aprovar as reformas", diz Rafael, que trabalha como repositor de um Mercal, rede estatal de mercados populares, ao pé de um dos morros. No sábado à tarde, moradores formavam filas de até três horas para entrar no mercado, com produtos a preços subsidiados, criado por Chávez. Ali vendia-se uma peça inteira de pernil, o prato mais tradicional dos venezuelanos no Natal, ao equivalente a US$ 2,50 - em outros mercados, o quilo não sai por menos e US$ 9 - mas as prateleiras estão vazias de açúcar, leite, carne e frango.

Inconformados com a derrota, chavistas de todo o país, como os de Petare, começam a organizar-se para o que Chávez chama de "segunda ofensiva" rumo a mudanças na Constituição. Nos últimos dias, um sindicato de trabalhadores da PDVSA e a federação de estudantes de universidades "bolivarianas" iniciaram a coleta de assinaturas para uma "nova" proposta de reforma, "emanada do povo" - as mudanças rejeitadas eram iniciativa do Executivo. Precisam do apoio de ao menos 15% da população.

Mas há fortes dúvidas sobre a legalidade de uma segunda ofensiva de Chávez e seus seguidores. Segundo a oposição, isso viola as prerrogativas constitucionais, que só permitiriam uma única proposta de revisão a cada mandato presidencial. O mais provável é que o Tribunal Superior de Justiça, pró-governo, seja instado a dar o veredito sobre o assunto. Carlos Escarrá, um dos deputados mais próximos do presidente, estima que isso pode acontecer em 2009, após as eleições para governadores e prefeitos, em meados de 2008.

"Sempre que perdemos batalhas, avançamos em seguida com vitórias mais contundentes", diz Carlos Rondón, o Chino, assistente social que trabalha na câmara de vereadores de Sucre, município da Grande Caracas ao qual pertence o complexo de Petare. Aos 42 anos, Chino demonstra agradecimento ao presidente por julgar que foi ele quem lhe deu a oportunidade de voltar a estudar, o que não fazia desde 1979. Quando ia começar o ensino médio, apaixonou-se pela primeira mulher, engravidou-a e saiu de casa. Hoje está no segundo casamento e tem oito filhos.

Há quatro meses ele faz parte da Missão Ribas, uma espécie de "intensivão" para adultos criado pelo governo, que abrevia o ensino médio de cinco para dois anos, com aulas três vezes por semana. "Você não imagina o tamanho da superação pessoal", diz Chino, que sonha entrar numa faculdade de Direito. No colégio, tem aulas de língua espanhola, inglês, história geral, história venezuelana, matemá-tica. E de formação cidadã. "É uma matéria que nos fala sobre o exercício da cidadania, que nos faz enxergar de onde viemos e por que passamos pelos acontecimentos recentes do nosso país", explica.

O problema para Chávez é que começa a faltar dinheiro para manter suas "missões", os programas sociais lançados em 2003, no mesmo nível dos últimos anos. O número de clientes mensais da rede Mercal, com a escassez de vários produtos básicos, caiu de 11,4 milhões para 9,9 milhões, entre julho de 2006 e julho deste ano.

A Missão Madres del Barrio (Mães da Favela) chegou a oferecer complemento de renda a 240 mil mulheres de baixa renda. Agora beneficia cerca de 62 mil. A Missão Vuelvan Caras, rebatizada de Che Guevara, cujo objetivo é formar mão-de-obra técnica, conseguiu colocar no mercado de trabalho apenas 28% de seus graduados, segundo um estudo recente do Banco Central da Venezuela.

Outros problemas, como o desabastecimento de leite, a inflação em alta, a sensação de corrupção e a violência urbana, corroem a popularidade de Chávez e ajudam a explicar a vitória do "não" na periferia de Caracas. Levantamento da organização não governamental Redes Populares aponta que, no município de Sucre, oito em cada dez comerciantes já foram roubados. Quase 74% dos crimes ocorrem de dia. A ONG já contabilizou 460 pessoas assassinadas no município de Sucre somente neste ano.

Duas vítimas foram os vizinhos do carpinteiro Julio Aural, de 35 anos, mas com aparência envelhecida em pelo menos outros dez. Eram dois jovens, de 13 e de 14 anos. "Os pais estão destruídos", diz ele, que votou contra Chávez devido à incapacidade do governo de conter a criminalidade. "Hoje saímos de casa para trabalhar e não sabemos se voltamos vivos", completa Aural, que diz viver num morro em disputa por dois grupos de traficantes de droga.

O taxista Félix Lara sempre havia votado em Chávez, mas votou pelo "não" no referendo. E assegura que outras 15 pessoas de sua família, com quem mora num casebre de dois andares, também mudaram de lado. "As pessoas começam a sentir saudade dos tempos mais tranqüilos, ninguém agüenta mais esse clima de enfrentamento. Chávez é muito autoritário", diz Lara. Para ele, que gosta do general Raúl Baduel (ex-ministro da Defesa que rompeu com Chávez), já dá para falar em um chavismo sem seu criador. "Chávez fez uma boa coisa: agora ninguém mais fecha os olhos para os políticos, e nenhum político que assuma o lugar dele poderá deixar de ver os pobres."