Título: Aperto de crédito, o ponto de inflexão
Autor: Wolf , Martin
Fonte: Valor Econômico, 12/12/2007, Opinião, p. A15

Estes são momentos históricos para a economia mundial. Senti o mesmo durante as crises financeiras nos mercados emergentes de 1997 e 1998 e na bolha nas ações de tecnologia que estourou em 2000. Esse "aperto de crédito" poderá, acredito, ser um ponto de virada igualmente importante para mercados financeiros e para a economia mundial. Porque acredito nisso? Permita-me enumerar os aspectos.

Em primeiro e mais importante lugar, o que está acontecendo nos mercados de crédito, hoje, representa um enorme golpe na credibilidade do modelo anglo-saxão de capitalismo financeiro orientado para transações. Uma mistura de capitalismo de compadres e incompetência flagrante ficou evidente no núcleo dos mercados financeiros de Nova York e Londres. Do crédito subprime ninja ("no-income, no-job, no-asset", do inglês, "sem-renda, sem emprego, sem ativo") à emissão (e classificação favorável) de ativos que se revelam ser quase impossíveis de entender, atribuir um valor ou vender, essas atividades estiveram crivadas de conflitos de interesses e incompetência. Na subseqüente era da "repulsa", os mercados financeiros centrais emperraram.

Segundo, esses eventos puseram em dúvida a viabilidade do empréstimo securitizado, pelo menos na sua forma atual. A justificativa para essa mudança - que admito ter aceitado - era a de que ela transferiria o risco da transformação de termo (tomando a curto prazo para emprestar a longo prazo) do frágil sistema bancário para os ombros dos mais capacitados a suportá-lo. O que aconteceu, em vez disso, foi a transferência do risco dos ombros daqueles menos capazes de entendê-lo. O que também ocorreu foi uma multiplicação da alavancagem e da transformação de termo, especialmente através dos "veículos e investimento especial" dos bancos, que comprovaram estar apenas conceitualmente fora do balanço patrimonial. O que vemos hoje, consequentemente, é uma retração veloz dos mercados de papéis lastreados em ativos.

Terceiro, a crise escancarou questões de peso sobre os papéis dos bancos centrais e dos órgãos reguladores. Até que ponto, por exemplo, se estendem as responsabilidades dos bancos centrais na condição de "emprestadores de última instância" durante crises? Deveriam eles, como dizem alguns, ser formadores de mercado de última instância em mercados de crédito? O que, mais precisamente, deveria um banco central fazer quando a liquidez evapora em mercados importantes? Da mesma forma, a crise indica que a liquidez tem sido significativamente subavaliada. Será que isso significa que o arcabouço regulatório para os bancos é fundamentalmente falho? O que resta da idéia de que podemos confiar em instituições financeiras para administrar risco por meio dos seus próprios modelos? O que, ademais, pode razoavelmente se esperar das agências de classificação? O mercado de financiamento imobiliário nos EUA dificilmente pode ser considerado um terreno desconhecido. Se os bancos e agências de classificação entenderam isso errado, o que mais precisa ser questionado?

Quarto, você se lembra das lições de moral das autoridades dos EUA, voltadas especialmente para os japoneses, sobre a importância de deixar que os preços dos ativos atinjam equilíbrio e transparência e permitir que entrem nos mercados o mais rápido possível? Isso, porém, foi num país do passado. Agora, vemos Hank Paulson, o secretário do Tesouro dos EUA, tentando organizar o cartel de detentores de ativos securitizados tóxicos no "SuperSIV". Mais importante, observamos o Tesouro dos EUA intervindo diretamente no processo de formação de notas de crédito nas hipotecas, na tentativa de apoiar o mercado habitacional. Uma, ou ambas as idéias podem ser boas (embora eu duvide disso com veemência). Mas elas estão em desacordo com o que os EUA têm historicamente recomendado a outros países numa condição similar. As pessoas não ouvirão por muito tempo os sermões das autoridades dos EUA sobre as virtudes de mercados financeiros livres com semblante sério.

-------------------------------------------------------------------------------- Experiência ensina que grandes choques financeiros afetam padrões de crédito e de gastos em todo o mundo, e este não será diferente --------------------------------------------------------------------------------

Quinto (e aqui começamos a nos afastar das questões sobre o funcionamento do sistema financeiro para as implicações macroeconômicas globais), a crise sinaliza uma necessária reclassificação do risco. Ficou provado que ele também representa um movimento na direção de deter ativos mais transparentes e líquidos, como se poderia esperar. Essa correção é no conjunto desejável. Além disso, ela tem sido seletiva. É uma característica notável do que aconteceu que os mercados emergentes despontaram como um porto seguro num momento em que os investidores fugiram das famílias dos EUA. Para os que estão nos mercados emergentes, isso deve ser uma doce vingança. Eles não deveriam se regozijar tão cedo. Os favoritos de hoje podem ser brutalmente descartados amanhã.

Sexto, esse evento pode muito bem assinalar os limites do papel dos EUA como consumidor de última instância na economia mundial. Como observa a Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) em seu mais recente Panorama Econômico, a correção já está bem encaminhada. Em 2007, ela projeta, a demanda doméstica final dos EUA crescerá em apenas 1,9%, numa queda ante os 2,9% de 2006. Prevê um declínio adicional, para crescimento de 1,4%, no próximo ano. Nos dois anos, as exportações líquidas farão uma contribuição positiva para o crescimento: 0,5 pontos percentuais em 2007 e 0,4 pontos percentuais em 2008, enquanto o déficit na balança comercial encolhe em termos reais. Desta forma, os EUA estão reimportando o estímulo que exportaram para o resto do mundo em anos anteriores. O aperto de crédito muito provavelmente acelerará esse processo. Portanto, os EUA precisam de um sólido crescimento das exportações líquidas. Por esse motivo, os formuladores de política estão tranqüilos a respeito da queda do dólar, contanto que isso não desperte temores de inflação crescente em ritmo veloz.

Sétimo, uma recessão nos EUA é possível. Se ocorrer vai depender esmagadoramente dos consumidores. A principal contrapartida dos déficits externos tem sido os excessos de gastos das famílias em relação às suas rendas. Isso significou uma poupança insignificante e um grande salto no endividamento das famílias: o endividamento hipotecário deu um salto, de 63% das rendas disponíveis em 1995, para 98%, em 2005. É improvável que essa tendência de alta continue num mercado habitacional em queda. A falta de disposição (ou de capacidade) de tomar emprestado nessa escala dificultará, por sua vez, a eficácia da política monetária dos EUA. Esta, por sua vez, torna um dólar fraco e um vigoroso crescimento nas exportações ainda mais importantes.

Por último, mas não menos importante, esse evento também tem um grande significado para o jogo de "passe de déficits externos" que tem caracterizado a economia mundial por várias décadas. Ele comprovou ser virtualmente impossível para as economias de mercados emergentes manterem vastos déficits sem se depararem com crises. Ao longo da década passada, os EUA preencheram o (crescente) abismo como maior emprestador de última instância. Essa época provavelmente já se encerrou. Mas os superávits gerados pela China e o Japão, pelos exportadores de petróleo e, no âmbito da União Européia, pela Alemanha, continuam crescendo. Se quisermos desfrutar a estabilidade macroeconômica, será necessário que apareça um conjunto de tomadores de crédito compensador digno de crédito. Se os EUA pararem de aumentar a sua absorção dos crescentes superávits de poupança gerados em todas as partes, quais países serão capazes e estarão dispostos a fazê-lo?

A experiência ensina que grandes choques financeiros afetam padrões de concessão de crédito e padrões de gastos em todo o mundo. Quando se origina, como este, no centro da economia mundial, esta também terá esse efeito. A questão é quão estável e dinâmica será a economia mundial que emergirá.