Título: O impasse concorrencial do rio Madeira
Autor: Gaban , Eduardo Molan
Fonte: Valor Econômico, 07/01/2008, Legislação & Tributos, p. E2

No início do mês de novembro de 2007, desfez-se o bloqueio ao estabelecimento da livre concorrência em uma das maiores, senão a maior, licitação do país - para a construção de usinas hidrelétricas (UHEs) no rio Madeira. A mencionada abertura concorrencial não decorreu do acaso, mas de um monumental e célere esforço das autoridades de defesa da concorrência e regulação econômica responsáveis pela celeuma, que chegou até a ser debatida no Poder Judiciário dos Estados Unidos.

O projeto, sem precedentes no Brasil e de evidente relevância para o interesse nacional - já que integra o Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) -, envolve a construção de duas hidrelétricas (Santo Antônio e Jirau) compostas por 44 turbinas cada, ao longo do rio Madeira, em Rondônia. Em razão da escolha de uma tecnologia mais favorável ao meio ambiente, nelas serão utilizadas turbinas tipo bulbo e geradores específicos, sendo que, com plantas no Brasil, há apenas três fornecedores aptos a levarem a efeito a obra.

Após dois anos de estudos de viabilidade e outros tantos necessários à estruturação da obra, publicadas as regras técnicas do leilão, os agentes econômicos interessados em concorrer começaram a encontrar dificuldades para cotar preços com os mencionados fornecedores. Sensível ao impasse que surgia, a Secretaria de Direito Econômico (SDE) do Ministério da Justiça começa a apurar a questão, colhendo manifestações do mercado e dos órgãos governamentais envolvidos, tudo com o fim de garantir a efetiva concorrência. Especulou-se que, sem concorrência, as duas obras implicariam custos estimados a R$ 12,5 bilhões, contra custos estimados em R$ 9,5 bilhões com concorrência.

Tinham as autoridades como desafio entender o setor e suas complexas peculiaridades e balancear os bens jurídicos em jogo. De um lado, havia o direito privado de um agente econômico que se adiantou aos demais e contratou, com exclusividade, os únicos fornecedores aptos a realizarem as obras. De outro lado, o interesse da coletividade em ter um leilão com concorrentes, o que, no caso dos consumidores, reflete a obtenção de acesso a uma tarifa de energia mais barata - tendo em vista que vencerá o leilão quem ofertar o menor preço. Tudo isso deveria ser ponderado em um período curtíssimo de tempo e em atenção aos princípios da legalidade, isonomia, livre iniciativa, livre concorrência, defesa do consumidor e devido processo legal.

-------------------------------------------------------------------------------- O caso é um inegável exemplo que se espera sirva de parâmetro à condução da defesa da concorrência no Brasil --------------------------------------------------------------------------------

Diante dos fortes indícios colhidos, a SDE adotou uma medida preventiva visando suspender a eficácia da exclusividade que impedia que os fornecedores com planta no país pudessem dar cotação e posteriormente fornecer turbinas e geradores aos eventuais ganhadores dos leilões. Como se sabe, o debate se estendeu ao Judiciário, mas acabou por ser celebrado um termo de compromisso de cessação de prática (TCC) com o Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) em que os investigados pela SDE abriram mão das exclusividades em prol da suspensão das investigações.

Neste caso, o SBDC procedeu de maneira proficiente, colhendo manifestações de agentes privados e públicos, em um nítido e salutar diálogo entre instituições, o que viabilizou uma significativa redução da imanente assimetria de informação, dado que colabora sempre, em grande medida, para decisões mais eficazes com vistas ao restabelecimento do regime concorrencial em benefício do mercado e dos consumidores. Isso se dá porque, como dito, é natural haver uma clara assimetria de informação na relação entre o Estado - no caso, o Sistema Brasileiro de Defesa (SBDC) - e os agentes privados que intenta regular, sendo um claro exemplo o mercado em questão. Em setores relativamente complexos, como o de turbinas e geradores para hidrelétrica, os agentes públicos normalmente desconhecem as peculiaridades da dinâmica do mercado, bem como as informações sobre estrutura de custos e ganhos por parte das firmas nele fixadas e, sobretudo, a qualidade de seus produtos e serviços. Nem teriam como conhecê-las. Como conseqüência, corre-se o risco da ineficácia regulatória, translúcida em uma norma de decisão pouco eficaz ou, no pior cenário, geratriz de excessivas externalidades negativas, acabando a coletividade por perder em termos de custo, qualidade, segurança e salubridade. Tal raciocínio se reforça quando se considera a ausência de incentivos para que os agentes econômicos passíveis das medidas regulatórias e pró-concorrenciais cedam espontaneamente informações relevantes às autoridades.

Mas, como dito, não foi o que ocorreu neste caso. O SBDC, sobretudo por intermédio da SDE, procedeu, dentro da limitação temporal imanente ao caso, à escuta de quase todos os interessados no objeto em apreço, desde eventuais clientes das futuras hidrelétricas a autoridades públicas especializadas e diretamente relacionadas ao caso - como a Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) e o Ministério das Minas e Energia -, incluindo possíveis interessados em participar do leilão, ainda que no papel de coadjuvantes. Procedimentos deste jaez denotam a concretização dos ditames da supremacia do interesse público sobre o interesse privado e da indisponibilidade do interesse público pelo administrador.

Com relação ao caso concreto, pode-se concluir que, ao menos no tocante à concorrência na fase pré-leilão, viabilizou-se a estruturação de efetiva rivalidade, ao passo que, com relação ao papel desempenhado pelas autoridades "in casu", trata-se de um inegável exemplo de atuação, que se espera sirva de parâmetro à condução das atividades de defesa da concorrência no Brasil, que muito têm a contribuir para o bem estar econômico e social nacionais.

Eduardo Molan Gaban é advogado da área concorrencial do escritório Franceschini e Miranda Advogados

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