Título: Para analistas, reestruturar a dívida é só o primeiro passo
Autor: Paulo Braga
Fonte: Valor Econômico, 24/01/2005, Finanças, p. C8

Mesmo que conclua com sucesso a reestruturação de quase US$ 82 bilhões em bônus que deixaram de ser pagos a partir de dezembro de 2001, a Argentina ainda ficará com um pesado endividamento que a obrigará a manter forte disciplina fiscal para evitar dar o calote novamente. E para os que vêem as expressivas taxas de crescimento apresentadas pelo país nos últimos dois anos (8,8% em 2003 e cerca de 8% no ano passado) como indício de que o calote pode ser modelo a ser imitado por outros países emergentes, a maioria dos analistas alerta que os custos da moratória são altíssimos, e que deixar de pagar não foi opção, mas conseqüência inevitável da crise econômica, política e social de proporções inéditas que explodiu no final de 2001. O próprio ministro da Economia, Roberto Lavagna, disse no último dia 12, ao apresentar a reestruturação, que a idéia de que os termos da proposta são um prêmio para o país é falsa, e listou os problemas enfrentados nos últimos anos: "Endividamento sem limite, desemprego recorde, desestruturação produtiva, perda importante do tecido social, pobreza, indigência, riscos de hiperinflação e desarticulação política. Ninguém pode pensar que este é um exemplo para que outros países cogitem uma reestruturação ao estilo argentino". O economista Daniel Artana, da consultoria Fiel, nota que o crescimento dos últimos anos apenas fez com que "recuperássemos parte do terreno perdido e voltássemos aos níveis de 1996/97, enquanto que outros países, como o Brasil, estão acima deste nível". E mesmo com uma reestruturação bem-sucedida, o que deveria implicar na adesão de pelo menos 70% dos credores até 25 de fevereiro, prazo limite para aceitar ou não a proposta, Artana estima que a dívida total da Argentina alcançará 80% do PIB. Ele calcula que somente um cenário ultra otimista, com crescimento médio acima de 4% e manutenção de um superávit primário da mesma magnitude, permitirão que em 2012 a relação dívida/PIB chegue a 40%, nível considerado confortável pelo governo. Ele e outros economistas também consideram que a saída da moratória será essencial para a manutenção do crescimento, já que permitirá a retomada de investimentos que foram paralisados. "Nossa taxa de investimento está em cerca de 18% do PIB, mas para crescer 4% ou 5% precisamos que o índice chegue a 22% ou 23%", disse o ex-diretor do banco central Julio Piekarz. Por enquanto, a situação de moratória impede também que a maior parte das empresas possa levantar crédito no exterior, ao mesmo tempo em que o crédito doméstico é escasso pelas debilidades ainda sofridas pelo sistema financeiro. "Há poucos setores que tiveram fluxo de caixa e investiram, como o agropecuário e as pequenas e médias empresas industriais", assinala Artana. "Não digo que a situação vá se resolver rápido, mas é preciso ir somando fatores positivos para que melhore." Piekarz assinala que no último ano houve uma recuperação do ingresso de recursos estrangeiros, a maioria para a compra de ações e de títulos que não estão com pagamento atrasado. Uma reestruturação bem-sucedida, combinada com a renegociação dos contratos com as empresas de serviços públicos privatizadas, abriria caminho para a retomada dos investimentos de grandes empresas, que nos últimos anos vêm se concentrando em outros países da região. Até o terceiro trimestre de 2004, a Argentina havia recebido US$ 3,231 bilhões em investimento estrangeiro direto, e se a cifra anual chegar a US$ 4 bilhões representará um crescimento de quase 200% em relação ao ano anterior. Apesar disso, o valor é baixo se comparado com o Brasil, onde foram injetados no ano passado US$ 18,166 bilhões. Economistas mais à esquerda também não elogiam a moratória, embora considerem que o fato de não ter que cumprir pagamentos importantes "disponibilizou recursos que supriram um processo incipiente de desenvolvimento", segundo avaliação de Abraham Gra, integrante do chamado Grupo Fenix, formado por economistas que foram pioneiros em questionar a conversibilidade já no fim dos anos 90. Mas o principal fator que impulsionou a recuperação, de acordo com ele, "foi uma desvalorização selvagem que colocou a Argentina em condições de substituir importações", além do contexto internacional favorável, com juros baixos e preços de commodities altos. Depois de sair da moratória, a principal preocupação da Argentina deve ser recuperar a renda dos trabalhadores, cuja queda dos últimos anos é atribuída ao modelo de exportação de produtos primários. "Se não incorporarmos valor agregado a nossas exportações, não teremos possibilidade de crescimento real. A Argentina vai ter que industrializar de novo", diz Gra, posição que coincide com o ortodoxo Artana. "A desvalorização promoveu uma redistribuição da renda, mas contra os trabalhadores e a favor dos empresários", afirma.