Título: À espera de um choque de competência
Autor: Cristovam Buarque
Fonte: Valor Econômico, 07/01/2005, FIM DE SEMANA EU &, p. 4

Não há política econômica de esquerda ou de direita. Há política econômica responsável ou irresponsável, competente ou incompetente. A política econômica não precisa de ideologia, mas de caráter: manter-se firme em metas nacionais, cumprir acordos e não se submeter a pressões corporativas conjunturais. Foi a partir do século 19 que o problema social passou a ser visto como conseqüência direta da economia: a política econômica como planta arquitetônica da sociedade. Acreditava-se que pelo controle das variáveis econômicas se construiria a sociedade desejada. Esquerda e direita disputavam ideologicamente o modelo de funcionamento da economia. O final do século 20 mostrou que o desenvolvimento induzido pelas políticas econômicas intervencionistas não só deixara de construir utopias, como também desagregara sociedades, impusera autoritarismo, degradara o meio ambiente, e que a força do neoliberalismo global não deixara brechas para gestos ousados na economia. Restava ao campo da ideologia a possibilidade de alterar as prioridades no uso dos recursos públicos para a execução de políticas sociais. A ideologia limita-se, assim, ao espaço da política orçamentária, em aspectos que não possam ferir os pilares da política econômica responsável e competente. Política econômica responsável assegura estabilidade aos agentes econômicos - trabalhadores, empresários, consumidores - e mantém um clima de incentivo à produção, criação de emprego, renda. Política competente combina corretamente as contradições desses objetivos. Baixar a taxa de juros por vontade política é irresponsabilidade; elevá-la além do necessário é incompetência, mas não é assunto ideológico, de vontade política. A arena ideológica se limita a definir quem paga os impostos e quem se beneficia deles, e as políticas fiscal e orçamentária. É nisso que se diferenciam direita e esquerda. A primeira baseia-se na crença de que investimentos criarão renda e que o mercado permitirá o atendimento das demandas. A esquerda busca justiça social na distribuição progressiva dos impostos e na prioridade aos investimentos sociais como forma de atender às necessidades da sociedade. As amarras do neoliberalismo global não deixam brechas para ousadias na política econômica, mas permitem mudanças sociais. Nelson Mandela, símbolo da esquerda mundial, foi um presidente responsável e competente na política econômica. Mas fez uma revolução social em seu país, ao abolir o "apartheid" e conseguir que brancos e negros pudessem andar na mesma calçada. O desafio da esquerda brasileira é abolir a apartação e permitir que pobres e ricos estudem nas mesmas escolas. Essa mudança é possível com medidas educacionais e política orçamentária, com a federalização da educação básica e a canalização de recursos da União para esse setor. Foto: Sergio Lima/Folha Imagem

Discute-se no Congresso um orçamento sem o traço renovador do debate ideológico; e as bandeiras da esquerda deixam de guiar-se por compromissos éticos

O Brasil é um dos raros países com maioria da população de baixa renda em que a renda nacional e a carga fiscal já permitem a realização de um choque de políticas públicas para superar a exclusão social. Lamentavelmente, isso não está sendo feito, porque o debate ideológico, dentro e fora do partido do governo, se dá no terreno da política econômica, no lugar da política orçamentária, abandonando os verdadeiros compromissos éticos que deveriam nortear as bandeiras da esquerda. Essa visão da economia como objeto de debate ideológico decorre da herança mental de um tempo em que o Estado dispunha de instrumentos para regular a economia: o setor financeiro podia ser estatizado, as fronteiras comerciais controladas, o endividamento ainda era possível; e também da cooptação das forças de esquerda como beneficiárias das prioridades do orçamento, que mantêm o debate no terreno econômico como forma de adiar perdas de subsídios e privilégios. No fim de 2004, mais uma vez os governos - federal, estaduais e municipais - definiram como serão gastos 35% da renda nacional nas mãos do setor público, sem realizar um debate ideológico sobre quem vai pagar e quem vai se beneficiar deles, e que Brasil queremos construir com esses gastos. A Sierra Maestra do século 21 está nas comissões de orçamento dos parlamentos, e o objetivo da luta não é mudar a política econômica, para que o Brasil continue igual ou pior, mas a política orçamentária, para mudar o Brasil. Com os recursos de que o setor público dispõe para 2005 é possível cumprir todas as obrigações de uma política econômica responsável, manter todos os pilares de uma política econômica competente e fazer os investimentos necessários para uma revolução na educação brasileira: dobrar os gastos da União com a educação básica. O quadro (ver página 16) mostra como são poucos os recursos necessários para fazer dobrar os recursos da União à disposição da educação básica no Brasil. Pena que, prisioneira da velha lógica dos interesses corporativos do setor moderno, a esquerda ignore a arena ideológica do orçamento. E concentre seu discurso na disputa pela redução do imposto de renda, e da taxa de juros e do tamanho do superávit - esquecendo as necessidades do povo, e adiando ações que transformariam o Brasil.