Título: O Brasil como referência para outros países
Autor: Assis Moreira
Fonte: Valor Econômico, 10/02/2005, FIM DE SEMANA EU &, p. 10

O Brasil conseguiu, nos dez anos de existência da Organização Mundial do Comércio (OMC), um lugar privilegiado nos mecanismos de poder da instituição. A subida do país ao posto de um dos principais interlocutores entre os 148 sócios coincide com o aumento da participação dos países em desenvolvimento nas decisões da OMC - antes acusada de funcionar como um exclusivo clube de ricos, de acordo com os interesses dos países desenvolvidos. Nas discussões, em Genebra, para a nova etapa de derrubada de barreiras ao comércio internacional - a chamada rodada de Doha - o Brasil atraiu o foco das atenções ao organizar, em 2003, o G-20, grupo de países em desenvolvimento com propostas alternativas ao projeto dos EUA e União Européia para abertura do comércio agrícola. Em julho do ano passado, com os EUA, União Européia, Índia e Austrália, o Brasil integrou o grupo informal que tirou as negociações agrícolas do impasse, ao criar um acordo de princípios para orientar os negociadores. E tornou-se referência para outros países em desenvolvimento também pelo uso do principal instrumento da OMC, o mecanismo de solução de controvérsias, a que recorreu para contestar, com êxito, os subsídios dos EUA aos produtores americanos de algodão e os subsídios europeus ao açúcar. "O Brasil soube usar a OMC a seu favor; ganhou muito mais do que pode ter perdido com a criação da organização", atesta o economista Marcos Jank, presidente do Instituto do Comércio e Negociações Internacionais (Icone), organização que dá apoio técnico às demandas internacionais do setor agrícola brasileiro. "Desde a reunião ministerial de Doha (em 2001), o Brasil tem exercido um papel fundamental em todos os aspectos, como na criação do G-20", concorda Michael Bailey, coordenador da área de Investimentos e Comércio da Oxfam, uma das principais organizações não-governamentais internacionais dedicadas ao tema. O G-20 permitiu uma inédita e bem-sucedida articulação dos países em desenvolvimento para influir nas decisões da OMC, concordam as ONGs, diplomatas e outros especialistas em comércio internacional. A intensa atuação diplomática brasileira na OMC está ligada à convicção, no governo brasileiro, de que a organização é o principal caminho para defender os interesses do país no comércio internacional. O ministro das Relações Externas, Celso Amorim, anunciou que, em 2005, negociações comerciais regionais, como as que se desenvolvem entre o Mercosul e a União Européia, serão subordinadas aos desdobramentos da rodada de Doha, cujo futuro deve ser definido na reunião de ministros da OMC, em Hong Kong, no fim do ano. "A OMC é nossa aposta fundamental; essa sempre foi a linha brasileira", endossa Luiz Felipe Lampreia, ex-ministro das Relações Exteriores, vice-presidente do Centro Brasileiro de Relações Internacionais (Cebri). "Seria muito ruim para o Brasil o fracasso da OMC", concorda a coordenadora técnica da Coalizão Empresarial Brasileira e chefe da Unidade de Negociações Internacionais da Confederação Nacional da Indústria, Sandra Rios. Ela diz que negociações multilaterais, como as da OMC, que se realizam simultaneamente entre os principais atores no comércio mundial, são as mais adequadas para o Brasil. Países menores, de comércio externo concentrado em poucos produtos vendidos a poucos ou a um só parceiro comercial, podem resolver suas necessidades imediatas com acordos bilaterais, de abertura de mercados. O Brasil, com indústria e serviços diversificados (e vulneráveis à competição externa), compradores importantes em todos os continentes e uma pauta de exportações equilibrada de produtos básicos, como a soja, semi-manufaturados, como celulose, e manufaturados, como aviões, tem interesses que só podem ser defendidos adequadamente em um foro amplo como a OMC, concordam especialistas como Rios, Jank e Lampreia. "O Brasil tem vocação multilateral", resume um dos principais negociadores brasileiros, o subsecretário para Assuntos Econômicos e Tecnológicos do Itamaraty, Clodoaldo Hugueney. Essa é a razão, diz ele, para que o Brasil tenha eleito a rodada de negociações da OMC como prioridade. Hugueney afirma que essa prioridade não pode ser afetada nem mesmo por outros interesses do Brasil na OMC, como a reforma dos estatutos da organização, elaborada com ajuda de especialistas como o brasileiro Celso Lafer, e a eleição do novo diretor-geral da entidade, neste ano (para a qual um dos candidatos é o brasileiro Luis Felipe de Seixas Corrêa). "Queremos uma rodada bem-sucedida, e vamos nos esforçar para que essas duas questões não afetem as negociações", diz o diplomata. Para alguns observadores, porém, a ênfase na OMC não pode significar o abandono das negociações regionais como as realizadas pelo Brasil com União Européia (no acordo com o Mercosul) e EUA (na Alca). "Todos estão fazendo acordos bilaterais; há o risco real de os países maiores se desinteressarem das negociações multilaterais", alerta Jank. Ele se refere à disseminação de acordos comerciais feitos por grupos menores de países, apontada por críticos como o economista indiano-americano Jagdish Bagwati como uma ameaça à estabilidade do sistema de regras multilaterais de comércio. Há temores de aumento no número desses acordos, caso fracassem as negociações na OMC. Michael Bailey, da Oxfam, rejeita a hipótese. "Os EUA fizeram acordos profundos com países pequenos, de pouca importância no comércio mundial, e com países importantes fizeram acordos de pouco efeito prático", afirma o principal especialista em comércio da ONG britânica. "Nenhuma negociação bilateral de grande alcance vai ocorrer sem se basear, como patamar mínimo, nos resultados das discussões na OMC", concorda Adriano Campolina, da seção brasileira da Action Aid, outra ONG internacional de forte atuação nas discussões comerciais mundiais. Rodada de Doha Os acordos limitados entre países, registrados na OMC, já chegam perto de 300, e prosperam com as incertezas sobre os resultados da rodada de Doha. "Não vejo os EUA, nem a União Européia preparados para fazer concessões, em subsídios agrícolas ou em maior acesso de produtos agrícolas aos seus mercados", comenta, pessimista, Pedro Camargo Neto, consultor da Sociedade Rural Brasileira, idealizador das ações que levaram o Brasil a contestar na OMC os subsídios ao algodão e ao açúcar. "Espero que o governo brasileiro, na ânsia para avançar na liberalização comercial, não aceite algo medíocre." Poucos são tão otimistas como o ex-ministro Lampreia, que espera "bons resultados, a médio prazo", das discussões na OMC. Bailey, da Oxfam, fala em "cenário nebuloso" e teme resultados pouco ambiciosos para a rodada de Doha. Os países em desenvolvimento, no G-20, são fundamentais para obter maior abertura comercial no setor agrícola, mas sofrerão fortes pressões dos países ricos, que tentarão isolar líderes como o Brasil, comenta. "A União Européia é particularmente hábil nisso", diz. As pressões já começaram, como constata Sandra Rios, da Coalizão Empresarial. Declarações de diplomatas e autoridades da União Européia, e até do diretor-geral da OMC, Supachai Panitchpakdi, têm cobrado do Brasil, maior "ousadia" nas propostas para abrir seus próprios mercados para prestação de serviços e produtos industriais. "Uma vez decidido o impasse agrícola, onde há contradições entre os países desenvolvidos, os outros, como o Brasil, enfrentarão desafios muito mais complicados, para a defesa da indústria e do setor de serviços", afirma o economista do Dieese Adhemar Mineiro, representante da coalizão de ONGs Rede Brasileira pela Integração dos Povos (Rebrip) nas delegações oficiais a negociações internacionais de comércio. Hugueney acredita haver espaço para maiores concessões dos setores industrial e de serviços à concorrência internacional, e já começou a convidar representantes do meio empresarial para reuniões em que se definirá a proposta brasileira. Mineiro lembra que foram as contradições entre os países desenvolvidos, na discussão agrícola, e a ação organizada dos outros governos que mudou sensivelmente o processo de decisões da OMC, a ponto de ONG como o Rebrip, a Action Aid e a Oxfam se engajarem na reforma da organização como forma de defender os interesses dos países mais pobres. A inclusão do Brasil no grupo dos cinco que formulou a proposta para avançar na negociação sobre agricultura e a consolidação do G-20 e outros grupos de países menos desenvolvidos como interlocutores na rodada de Doha derrubaram a imagem da OMC como clube exclusivo dos países ricos. Mas é forte a demanda por mudanças, não só na situação do comércio agrícola, hoje prejudicial aos países menos desenvolvidos, mas também no próprio funcionamento da organização, em seu sistema de solução de controvérsias e na forma de tratar os temas do comércio. Até agora, como define Camargo Neto, as regras da OMC evitaram apenas que as condições do comércio internacional se deteriorassem para os países em desenvolvimento. As vitórias de países como o Brasil no órgão de solução de controvérsias da OMC se referem a tentativas de outros países de levantar novas barreiras comerciais ou ampliar os subsídios que distorcem o comércio agrícola. A rodada de Doha funciona como indicador do futuro. "A OMC está em uma encruzilhada: ou seu processo decisório se torna mais aberto, e incorpora os interesses da mais países, principalmente os em desenvolvimento, ou se consolida como uma organização manobrada por poucos países, e por esse caminho perde credibilidade", diz Hugueney.