Título: Ofensiva em campo minado
Autor: Assis Moreira
Fonte: Valor Econômico, 10/02/2005, FIM DE SEMANA EU &, p. 10

Em dez anos de história da Organização Mundial do Comércio (OMC), o Brasil foi o país em desenvolvimento mais ofensivo no uso da entidade para arbitrar disputas comerciais com outros governos. Foram levados 20 casos ao órgão de solução de controvérsias da organização. A maioria transformou-se em contenciosos, mas o Itamaraty conseguiu resolver boa parte dos problemas por meio de consultas e acordos diplomáticos que evitaram a manutenção dos conflitos por longo período em Genebra. Até que a OMC se pronuncie de forma definitiva e todas as suas recomendações sejam adotadas, uma disputa leva em média mais de três de anos para terminar. Em 2002, durante a campanha, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva afirmou que um de seus objetivos na política externa era fazer o Brasil "brigar mais" na OMC. Desde a posse de Lula, o país aumentou sua influência e liderança nas negociações internacionais, impulsionando a criação do G-20 na Conferência Ministerial de Cancún, mas não levou nenhum novo caso para arbitragem em Genebra, na contramão do histórico. Todas as disputas foram iniciadas pela gestão anterior. Nesse período, surgiram novas restrições às exportações brasileiras, como as barreiras argentinas para eletrodomésticos e uma medida antidumping que tira a competitividade do camarão brasileiro nos EUA. O setor privado também aventou a possibilidade de contestar os subsídios americanos à produção de arroz, mas o assunto ainda não foi levado adiante pela diplomacia. O espaço para brigar contra os incentivos ao arroz abriu-se com os dois relatórios, divulgados pela OMC no ano passado, que consideraram contrários às leis internacionais de comércio os subsídios dados à produção americana de algodão e o regime açucareiro europeu. Logo no início do mandato, o governo Lula deu continuidade a esses dois casos e tomou a decisão de pedir a abertura de "panel" (comitê de arbitragem), instância em que cinco especialistas são chamados a estudar a disputa e produzir um relatório em seis meses, julgando a legalidade das supostas barreiras protecionistas. Os pedidos para a realização de consultas já haviam sido feitos. É justamente esse, de acordo com levantamentos feitos por especialistas, o momento mais delicado de uma disputa. Em um dos mais completos estudos sobre o órgão de solução de controvérsias, os cientistas políticos Marc Busch e Eric Reinhardt, da faculdade canadense Queen's School of Business, estimam que um país em desenvolvimento aumenta em 55 vezes a possibilidade de ele mesmo responder a um processo na OMC quando pede consultas para contestar medidas protecionistas adotadas pelo governo de um país desenvolvido. É o que Busch e Reinhardt chamam de efeito "telhado de vidro". A retaliação pode vir de formas diferentes, especialmente para países mais pobres. Ao comprar briga na OMC, eles expõem o protecionismo do mundo rico e correm o risco de pagar o preço em outros campos, como a diminuição dos fluxos de ajuda financeira internacional para o desenvolvimento de suas pequenas economias. É por isso que, apesar de a OMC propagandear a democratização do órgão de solução de controvérsias, 56% das 324 disputas que chegaram a Genebra nesses dez anos envolveram pelo menos um dos países da "Quad" (o grande bloco rico, formado por EUA, União Européia, Japão e Canadá). Em dezenas de casos, a briga foi entre eles próprios. Após o Brasil, os países em desenvolvimento que mais casos levaram à OMC foram México, Tailândia (11 cada um) e Índia (10). Em todos os contenciosos abertos pela diplomacia brasileira, apenas um não resultou em clara vitória para o país. Contrariando os argumentos do Itamaraty, um "panel" autorizou em 2003 a manutenção de uma medida antidumping da União Européia contra as exportações de produtos de ferro da Tupy Fundições. Acordos diplomáticos encerraram disputas importantes, após a realização de consultas, como as restrições européias à venda de café solúvel brasileiro. O Itamaraty também já costurou, na primeira década de OMC, acertos com México, EUA e Argentina para evitar contenciosos prolongados. Esse é um dos paradoxos do órgão de solução de controvérsias. Ao mesmo tempo em que um pedido de consultas gera polêmica e multiplica as possibilidades de represália, é nessa fase que se concentram chances de um acordo amigável. Montado o comitê de arbitragem, os estudos apontam que dificilmente há entendimento e os países tendem a assumir a briga até o fim. Na maioria das vezes, é complicado encontrar justificativas para explicar dentro de casa - depois de feitas todas as acusações e ameaças - qualquer recuo.