Título: OMC passa por crise de identidade
Autor: Assis Moreira
Fonte: Valor Econômico, 10/02/2005, FIM DE SEMANA EU &, p. 10

Ao completar dez anos, a Organização Mundial do Comércio (OMC) evita comemoração. A palavra de ordem na sede à margem do belo Lago Leman, em Genebra, é repensar este que é o fórum multilateral para a liberalização do comércio. Foi conturbada a década da primeira organização internacional do pós-Guerra Fria e a única com poderes para punir governos. Isso porque se tornou extremamente controversa, alvo de violentas manifestações antiglobalização e amargou dois fracassos (os encontros de Seattle e Cancún), que abalaram sua credibilidade. A OMC foi inflada de temas complexos e está cada vez mais fragmentada entre diferentes grupos de interesse, tornando a tomada de decisões por consenso quase impossível para os 148 países-membros alcançarem acordos. Para os países em desenvolvimento, que representam dois terços dos membros da OMC, o futuro da entidade está ligado ao sucesso da atual rodada global de negociações, simbolicamente batizada de Rodada do Desenvolvimento. A entidade começou a funcionar no dia 1º de janeiro de 1995, substituindo o antigo Acordo Geral de Tarifas e Comércio (Gatt). E logo países em desenvolvimento perceberam que tinham dado um cheque em branco que afetava seus interesses. Foi o que constatou o Brasil na briga com o Canadá sobre subsídios a aviões regionais. A OMC é bem diferente do Gatt. Este só tratava de tarifas e, portanto, só ia até a fronteira do país. Já a OMC tem impacto direto nas políticas nacionais: seu tratado de 550 páginas é incorporado integralmente nas leis nacionais depois de ratificado pelos parlamentos. Além disso, a OMC se diferencia pelo sistema de solução de controvérsias para fazer respeitar suas decisões. A regra do consenso negativo é uma inovação nas relações internacionais: uma decisão para punir um país só não é tomada se todos os outros membros disserem não - o que é praticamente impossível, no mínimo por que o reclamante manterá sua posição. Se as regras da OMC forem violadas, podem causar inclusive retaliação comercial. É por isso que a União Européia e os EUA querem trazer para a entidade temas como normas trabalhistas, ambientais, controle de subsídios ao setor siderúrgico e outros. Na OMC, há um custo real se um país recuar dos compromissos assumidos - o que está longe de ocorrer nas outras instituições que cuidam desses assuntos. Em 1996, já na primeira conferência ministerial da entidade, em Cingapura, as nações em desenvolvimento mostravam sua impaciência com o que consideravam injustiças das novas regras e com as pressões dos industrializados para aceitarem liberalização adicional. O clima deteriorou-se gradualmente, pavimentando o terreno para o fracasso das conferências ministeriais de Seattle, em 1999, e de Cancún, em 2003. Em Seattle, as organizações não-governamentais (ONGs) entraram de vez em cena, passando a influenciar as negociações. A atual rodada global de negociações só foi lançada, em novembro de 2002, em Doha (Catar), depois de ganhos como flexibilidade para quebrar patentes farmacêuticas em crises de saúde pública e de expectativas de se recuperarem espaços para políticas de desenvolvimento como resultado justamente de uma Rodada de Desenvolvimento. No entanto, o termo desenvolvimento continua indefinido na atual negociação. Tampouco há certezas sobre como as barganhas poderão tornar obrigatório o tratamento especial e diferenciado para as nações em desenvolvimento cortarem menos tarifas e em prazos maiores. Os países industrializados, na verdade, querem diferenciar os benefícios a países em desenvolvimento. Alegam que há enormes diferenças de nível econômico entre eles e acham que só uma coisa os uniria: o temor em relação à China. Em Cancún, em setembro de 2003, EUA e União Européia tentaram impor um acordo agrícola preparado só por ambos, o que acabou por consolidar o G-20, grupo liderado pelo Brasil (texto na página 13). A partir daí, esse grupo alterou de vez a relação de forças na entidade. Um acordo na OMC, hoje, tem que passar por um consenso entre União Européia, EUA, Brasil, China e Índia. Ao mesmo tempo, a expansão da OMC inclui numerosos países pequenos, com pouco comércio, mas que também reclamam transparência na entidade. É nesse contexto que a OMC vai se repensar. O grande desafio é como levar os governos a acelerar decisões, numa entidade onde tudo é decidido por consenso pelos países membros - até questões de estacionamento na sede da organização. A base da discussão será um relatório preparado por um comitê de oito personalidades eminentes, incluindo o brasileiro Celso Lafer, que será apresentado no próximo dia 17 aos países-membros. Estes poderão levar anos discutindo, antes de implementar alguma sugestão ou engavetá-la.

Comitê de Sábios proporá mais flexibilidade na tomada de decisão para facilitar consenso e dificultar obstruções nas negociações globais

Trata-se da terceira iniciativa desse tipo em quase 60 anos do sistema multilateral de comércio. Nas três vezes, o Brasil teve participação ativa. Na primeira comissão, nos anos 50, participou Roberto Campos. Nos anos 80, Mário Henrique Simonsen. E agora, o ex-ministro Celso Lafer. O relatório aborda de entrada a noção de soberania no mundo de hoje. Afinal, o que não for decidido nacionalmente precisa ser aprovado por consenso na cena internacional; se não, seria uma imposição. Soberania aloca o poder e o comitê sugere, por exemplo, que os países só poderiam adotar barreiras não tarifárias (sanitárias, técnicas etc) baseados em padrões internacionais. Há uma visão comum de que o consenso protege as grandes nações de maiorias destituídas de grande participação comercial, como também protege os pequenos de decisões que não levam seus interesses em conta. Mas o chamado Comitê de Sábios sugerirá uma abordagem mais flexível da tomada de decisão, para facilitar o consenso e, ao mesmo tempo, dificultar as obstruções nas negociações globais. Uma das idéias centrais é que o país que não quiser participar do consenso precisará demonstrar motivação substancial de interesse nacional. Ou seja, terá de prestar conta de sua posição, assumir a responsabilidade pelo impasse. Deseja-se evitar o que ocorreu na conferencia ministerial de Cancún, em setembro de 2003. Na ocasião, países exportadores e importadores agrícolas faziam progressos na tentativa de fechar um acordo para eliminar subsídios dados pelos países ricos, que devastam economias em desenvolvimento. Só que a conferência terminou em fiasco, não por causa da agricultura, mas sim por que um ministro de Botswana, liderando um pequeno grupo de países, bloqueou qualquer tentativa das nações industrializadas de abrir negociação que se destinava a harmonizar os procedimentos aduaneiros. "Ser contra facilitação de comércio numa organização destinada à liberalização comercial é no mínimo estranho", diz um negociador, que acredita, como outros, que muitos ministros agem sem saber o que está realmente em jogo e as conseqüências das posições que tomam. Para o comitê, outra maneira de simplificar a tomada de decisões é os países partirem para a votação em casos extremos, como prevê a própria OMC. Por exemplo, na eleição do diretor-geral, para evitar o que aconteceu na última vez, quando o confronto entre os candidatos paralisou a entidade por quatro meses. A idéia facilitaria a eleição de um diretor de país em desenvolvimento. Mas os EUA sempre indicaram que não têm a menor intenção de aceitar decisão por voto na OMC. Voto, na entidade, é visto como arsenal nuclear: só mesmo para dissuasão. O comitê aventa possibilidades de melhora no sistema de solução de controvérsias, peça central na OMC. Mas prefere manter a punição por retaliação (que aumenta tarifa sobre produtos do país condenado, por exemplo), em vez de sugerir, como pretendem alguns países, a compensação (reduzir tarifa para produto do país afetado), que estimularia mais comércio. A eficácia do sistema de disputas está em jogo. Em uma década, foram abertos 325 casos na OMC, em meio a reclamações de governos condenados de que os juízes criam novas obrigações. O problema, admitem delegados, é que os litígios normalmente envolvem questões que deveriam ser resolvidas nas negociações. Os países ricos, com um comércio maior, trazem mais casos e ganham mais disputas, graças a seus recursos jurídicos e financeiros. No geral, quase todos os reclamantes vencem as disputas na OMC. Mas as condenações não são retroativas. E o vencedor de uma disputa continuará sofrendo prejuízos, por que o condenado normalmente terá até 16 meses para tornar suas leis compatíveis com as regras da OMC. Se os EUA estiverem envolvidos, é pior ainda. Como maior potência do planeta, os EUA não querem fazer parte do sistema - querem ser o sistema. O Congresso demora anos para alterar uma lei - quando a altera - que foi condenada na OMC. O futuro da OMC passa também, na visão do comitê, por mais poder institucional para o diretor-geral. Sugere a criação de um secretário-geral, enquanto os diretores-adjuntos seriam reduzidos de quatro para dois. Há um sentimento comum, também, de que o secretariado da OMC, hoje com 500 funcionários, precisa ser reforçado - inclusive, para poder dar assistência técnica aos países menores, tarefa que tem sido feita mais e mais por ONGs. Igualmente, o comitê sugere que a OMC tenha disciplinas mais firmes para monitorar os acordos bilaterais e regionais, que já estão passando de 300 e ameaçam fragmentar mais a economia mundial. Assim, a OMC poderia dizer com clareza se um acordo é compatível com seu artigo 24, que diz que esses compromissos devem liberalizar parte substancial (pelo menos 80%) do comércio dos países envolvidos no pacto. Ponto primordial para o futuro da OMC passa por um dialogo institucional com as ONGs, por maior transparência e participação concreta dos países menores. O comitê indica que a OMC precisa de um bom marqueteiro. Outro tema da maior importância é sobre a cooperação e coerência com as outras organizações internacionais. Todas essas sugestões podem levar anos em discussões pelos países, até serem implementadas. Mas apontam para a direção que parece inevitável.