Título: EUA rejeitam negociação só com o Mercosul
Autor: Sergio Leo
Fonte: Valor Econômico, 09/02/2005, Especial, p. A10

São nulas as possibilidades de o governo dos Estados Unidos aceitarem a proposta de acordo comercial entre o país e o Mercosul, apresentada há dez dias ao representante comercial da Casa Branca, Robert Zoellick, pelo ministro de Relações Exteriores, Celso Amorim. Quem garante é o embaixador americano no Brasil, John Danilovich, para quem a negociação da Área de Livre Comércio das Américas (Alca) está entre as mais altas prioridades na relação bilateral Brasil-EUA. Peter Allgeier, vice-representante de Comércio, também enfatizou em Washington esta semana que um acordo bilateral Mercosul-EUA não é uma proposta aceitável. Danilovich adianta um sério ponto de divergência entre os dois governos: os Estados Unidos consideram "inamovível" a reivindicação de incluir, na futura Alca, regras mais fortes de cumprimento das leis de defesa da propriedade intelectual. O Brasil rejeita a idéia, por temor de que, na Alca, problemas com patentes venham a servir de pretexto para criação de barreiras comerciais a produtos brasileiros. A inclusão de medidas como essa, descartada pelo Brasil nos acordos bilaterais dos EUA, são um dos motivos apontados para a recusa das negociações bilaterais com o Mercosul. Apesar da divergência na Alca, Danilovich dá parabéns à equipe econômica por projetos como as Parcerias Público-Privada, e, embora note que investidores cobrem agilidade em relação à burocracia brasileira, afirma que as ações do governo estão "na direção certa". Grande financiador das campanhas republicanas, amigo do presidente George W. Bush, o embaixador também elogia a atuação política do governo brasileiro nos conflitos regionais, como a força de paz do Haiti e a negociação para eliminar atritos entre a Colômbia e a Venezuela. Ele vê com bons olhos a relação do governo Lula com Hugo Chávez, pelo trabalho "estabilizador" do Brasil, mas deixa clara a animosidade do governo americano com o presidente venezuelano, a quem acusa de interferir nos assuntos políticos dos vizinhos, facilitando a ação de grupos terroristas. "Temos preocupação com a ajuda e assistência a grupos terroristas", comenta o embaixador. Abaixo, os principais trechos da entrevista de Danilovich ao Valor. Valor: Que notícias o senhor tem do encontro entre o ministro Amorim e o representante comercial dos EUA, Robert Zoellick? John J. Danilovich: Foi uma excelente oportunidade. Sei que, como sempre, tiveram um encontro muito positivo e construtivo. Os dois têm um diálogo muito bom já há vários anos, eles se dão muito bem, se comunicam muito claramente um com o outro. Tiveram uma conversa muito boa sobre o futuro da Alca. Terminamos a eleição de nosso presidente em novembro e Estados Unidos e Brasil estão agora em boa posição para fazer avançar as conversas. Valor: O que o senhor pensa da proposta de começar uma negociação de acesso a mercados 4+1, Mercosul e Estados Unidos? Danilovich: Ambos sugeriram várias maneiras de seguir adiante (com a Alca). No fim deste mês, o vice-representante de Comércio da Casa Branca, Peter Allgeier, e Adhemar Bahadian, pelo Brasil, vão reunir-se em Washington para ver como avançar com a agenda. Os Estados Unidos estão comprometidos com a estrutura ("framework") estabelecida em Miami, em 2003. Foi com o que os co-presidentes concordaram. Não temos nenhum interesse em um diálogo 4+1 a essa altura, acreditamos que a Alca é realmente a forma de avançar. Valor: Por que não com o Mercosul, se os Estados Unidos se engajaram em negociações bilaterais com quase todos os países do continente americano? Danilovich: A essa altura, podemos assegurar o máximo, em matéria de objetivos e realizações, assegurando a negociação da Alca, com todo o hemisfério, segundo o quadro estabelecido em Miami. É algo com o que o presidente Bush e Bob Zoellick estão muito comprometidos. Uma negociação bilateral entre Mercosul e Estados Unidos, o 4+1, é um acordo bem mais duro, com muito mais exigências, mais detalhado. Essa negociação tem, de longe, muito mais requisitos, componentes de muito mais força, para eles (Bush e Zoellick) do que, talvez, o Mercosul estaria interessado. Ter o Hemisfério Ocidental, da ponta do Canadá à ponta da América do Sul, como um bloco comercial coeso, coerente e unido pode realmente prover mais benefícios aos países da região. Valor: Um dos obstáculos à negociação é a decisão dos Estados Unidos de criarem uma nova "cesta" de produtos para os quais não haveria um prazo definido de liberalização comercial, de eliminação de tarifas de importação. Seria possível um acordo sem essa categoria de produtos? Danilovich: Certos pontos que foram levantados anteriormente, propostas discutidas em termos muito gerais, propostas flexíveis que foram colocadas pelos negociadores são consideradas mais como meios que como obstáculos, meios de acelerar o processo, de tentar encontrar caminhos. Talvez essa lista de produtos com períodos mais extensos de redução de tarifas faça com que seja mais fácil atingir um consenso. São algo que técnicos vão olhar mais de perto para ver se é atraente para o Mercosul e para os Estados Unidos. Valor: O lado brasileiro também critica a exigência americana em relação a direitos de propriedade intelectual, de "enforcement", regras na Alca que garantam o cumprimento das leis de proteção a patentes. Esse tema não pode sair da mesa de negociação?

A política americana continua a mesma. Bush sempre foi comprometido com o livre comércio "

Danilovich: Direitos de propriedade intelectual são um componente crítico, absoluto, da Alca. É tempo de ser realmente considerado como um componente inamovível do acordo, como nos acordos anteriores. A sensibilidade em relação a contratos e patentes, os direitos das empresas que gastam milhões de dólares em pesquisa e demandam royalties por isso é um requisito natural. O Brasil tem feito esforços sérios para atacar o problema, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva criou comissões para garantir o cumprimento da lei, no Natal foram feitas prisões de violadores dos direitos de propriedade intelectual. Estamos nos movendo na direção correta, mas não é algo que possa ser posto de lado, discutido mais tarde. Está permanentemente sobre a mesa. Valor: O governo brasileiro concorda, mas diz que incluir o tema na Alca pode levar a medidas protecionistas, retaliações comerciais usando como pretexto violações dos direitos de propriedade intelectual... Danilovich: É um tema que temos discutido há tempos e a hora de tratar esse tema é essa. Valor: Com Robert Zoellick na Subsecretaria de Estado, quem comandará as negociações da Alca pelos Estados Unidos? Danilovich: A política americana continua a mesma. O presidente sempre foi comprometido com o livre comércio, o mesmo com Zoellick, Allgeier, Ross Wilson, Regina Vargo, a equipe está totalmente comprometida com o livre comércio global, seus benefícios comerciais e sociais. O presidente deve apontar um nome até o fim de fevereiro. De certa forma há um bônus adicional em ter Bob Zoellick como subsecretário de Estado, porque ele leva a essa posição um enorme conhecimento e experiência, que pode ser usada nas futuras discussões com o ministro Amorim e outros ministros de comércio (...) e é um bônus também porque ele tem um grande conhecimento sobre a América do Sul, embora não fale espanhol ou português, trata pelo primeiro nome líderes no continente, os conhece muito bem. Valor: Haverá alguma mudança em relação à América Latina nesse segundo mandato Bush? A secretária Condoleeza Rice afirmou que a América do Sul receberia atenção maior da administração Bush. O que muda para a região nesse segundo mandato? Danilovich: Os EUA continuaram engajados com a América do Sul mesmo depois de 11 de setembro. Creio que haverá um engajamento pessoal muito maior, por parte do presidente, da secretária de Estado, do subsecretário, em relação à América do Sul, para avançar e ampliar nossa agenda comum. Ela avança em muitos campos em que podemos trabalhar juntos, seja no combate ao tráfico de pessoas, ao narcotráfico, questões ambientais. A ligação entre os governos do Brasil e dos EUA é vasta e positiva e é algo que pode trazer benefícios mútuos se avançarmos as áreas de cooperação. Apreciamos muito as iniciativas que o Brasil tem feito recentemente na busca de estabilidade no Hemisfério Ocidental e no Hemisfério Sul. A atuação na força de paz do Haiti é louvável, notável. Os esforços do Brasil também com seus vizinhos, particularmente ao norte do continente, no que diz respeito à Colômbia, à Venezuela, à Bolívia, ao Peru, os esforços do Brasil e o relacionamento pessoal de Lula com os líderes da América do Sul, têm feito muito para melhorar, estabilizar o continente inteiro. Só com democracia e liberdade poderemos ter paz e prosperidade. Só com a estabilidade, sem conflitos, tensões, pressões no hemisfério, ele pode progredir. Valor: Qual é a principal área de cooperação entre Brasil e EUA em que o senhor está envolvido pessoalmente? Danilovich: As negociações da Alca certamente serão uma das principais áreas que nos ocupam. Há outras áreas de cooperação em que discutimos... Valor: Pelo que o senhor afirma sobre a Alca, pode-se ver que é também uma área de grande discórdia entre os dois governos... Danilovich: Não acho que seja uma área de grande discórdia, é um assunto que concordamos em discutir e negociar. Seria uma grande área de discórdia se alguém berrasse, batesse a porta, saísse da sala e afirmasse que não participaria do processo. Pelo contrário, os Estados Unidos e o Brasil estão discutindo, são co-presidentes do processo da Alca. Ambos temos a responsabilidade e obrigação de estarmos comprometidos com o objetivo. Não será fácil, nunca é, por isso é uma negociação. Estive envolvido no acordo de livre comércio (dos EUA) com os países da América Central, e, dado os países envolvidos, deveria ser uma questão simples, mas não foi. Nem foram os acordos bilaterais com o Chile, com Cingapura, com o Marrocos. Mas havia um compromisso. Valor: O presidente da Venezuela, Hugo Chávez, vem fazendo declarações severas contra os Estados Unidos, depois de reduzir o tom nos desentendimentos com a Colômbia. Como o senhor vê a atuação do presidente venezuelano? Danilovich: Primeiro, o presidente Lula, o ministro Amorim e o embaixador (sic) Marco Aurélio Garcia, cada um a seu modo, na ocasião própria, tem atuado de forma muito útil, nas últimas semanas, como "facilitadores", negociadores oficiais. Têm feito um excelente trabalho em arrefecer os comentários inflamados feitos durante a disputa entre Venezuela e Colômbia. Eu espero sinceramente, e as indicações são nesse sentido, de que as relações sejam restauradas ao nível em que deveriam estar. É muito importante ter paz nas fronteiras do Brasil e tranqüilidade nas relações entre Venezuela e Colômbia. O senhor Chávez tem uma agenda muito clara em relação à sua revolução bolivariana. Acho que isso é uma questão de preocupação não só para o Hemisfério Sul e para o Brasil, mas para outros países na fronteira com Venezuela e para os Estados Unidos.

Os direitos das empresas que gastam milhões em pesquisa e demandam os royalties é um requisito natural"

Valor: Poderia comentar um pouco mais sobre o que pensa da agenda de Chávez? Danilovich: Nossa preocupação é que o presidente Chávez, não só em seu próprio país, mantenha democracia e as instituições democráticas, o processo judicial com as liberdades inerentes à democracia. Mas conhecemos interferências na política interna de outros países na América do Sul. E (esperamos) que a relação com a Colômbia seja positiva. Valor: Os senhores acreditam que Chávez está interferindo em assuntos internos da Colômbia e outros países vizinhos? Danilovich: Nós nos preocupamos em relação ao terrorismo e indivíduos e grupos terroristas, preocupação com ajuda e assistência a esses grupos, algo que é contraproducente. Valor: Baseados nisso os Estados Unidos pretendem tomar parte, de alguma forma, nesse conflito entre Venezuela e Colômbia? Danilovich: Alguns países têm exercido um papel muito positivo ... Certamente o Brasil deve ser louvado por seus esforços, também o Peru, a Comunidade Andina tem feito um esforço substancial, o primeiro-ministro espanhol, José Luiz Zapatero, presidente Ricardo Lagos, do Chile, todos têm ajudado na solução das divergências. É algo de grande preocupação para o hemisfério e para os Estados Unidos. Valor: A decisão de Chávez, de vender as refinarias de petróleo venezuelanas instaladas nos EUA, também os preocupa? Danilovich: É sempre perigoso para a retórica política ficar além da realidade econômica. Não é certo se o presidente Chávez e seu governo pretendem concretizar essa retórica. A retórica que veio do Fórum Social de Porto Alegre, a que vem de Caracas, sejam os comentários desafortunados a respeito da secretária Rice, seja de seus investimentos nos Estados Unidos, seja sobre Simón Bolivar, que Deus guarde sua alma, é motivo de preocupação para muitos países em todo o mundo. Valor: Baseado em seus contatos com investidores americanos interessados no país, como o senhor vê o ambiente para investimentos no Brasil? Danilovich: Primeiro é preciso observar que há centenas de companhias americanas operando no Brasil, empregando dezenas de milhares de brasileiros, contribuindo com bilhões para a economia brasileira. O fato de muitas estarem há décadas, algumas há um século aqui é uma indicação do compromisso com o Brasil. Mas não somente em relação ao investimento americano, mas também ao europeu e outros investidores, tem havido um crescente coro de pedidos para que o Brasil dê mais agilidade à sua burocracia, ao sistema Judiciário, que os procedimentos sejam mais transparentes, que as regulamentações e exigências sejam mais fáceis de se lidar. Isso ajudaria o Brasil a atrair mais investimentos. Reformas estruturais não só ajudariam o Brasil, mas seriam um incentivo à vinda de mais companhias estrangeiras. As iniciativas de PPP são de muito interesse e há muitas, muitas companhias americanas interessadas. Valor: A legislação das PPPs é considerada satisfatória? Danilovich: Certamente. Com o futuro pacote de medidas regulatórias que o governo estará propondo ao Congresso neste ano esperamos que haverá mais melhorias estruturais - já estão acontecendo, de fato, no que diz respeito à política fiscal, à lei de inovação, à lei de falências. Todos os movimentos estão na direção certa. Com o compromisso brasileiro com as reformas estruturais e a compreensão de que elas virão, isso encoraja investimentos do mundo inteiro.