Título: Uma nova FAO para uma nova agricultura
Autor: Graziano da Silva , José
Fonte: Valor Econômico, 21/12/2007, Opinião, p. A12

Uma vida digna começa com uma alimentação adequada. Isso significa comida de qualidade, nutritiva, em quantidade suficiente e respeitando as especificidades locais e as diferentes culturas. Hoje, mais de 850 milhões de pessoas ainda não podem exercer esse direito humano. Mudar essa realidade é o objetivo principal da FAO e um desafio para todos os países, especialmente se considerarmos que em 2050 a população mundial deve ser superior a nove bilhões de pessoas - hoje somos cerca de seis bilhões.

Acabar com a fome é uma meta possível, mas não é fácil. Além de vontade política, são necessárias estratégias bem desenhadas e implantadas nos planos nacional e internacional, transversais e articuladas. Elas podem incluir ajudas emergenciais, investimentos em saúde, educação, desenvolvimento rural e tecnologia de produção agrícola e devem considerar também outras variáveis, como a mudança climática e o uso sustentável dos recursos naturais. Atualmente, nada pode ser feito sem considerar essas duas questões.

Por isso, o mundo precisa de uma nova revolução verde. Duplamente verde e com inclusão social, como diz o professor Ignacy Sachs. Para alimentar a crescente população mundial, é necessário dar um salto de produtividade que permita dobrar a produção de alimentos nas próximas décadas. E isso tem que ser feito de maneira sustentável, considerando que os recursos naturais são finitos, e com atenção para não ter um impacto negativo no clima.

A FAO, organização do sistema das Nações Unidas que trata da agricultura e alimentação, trabalha nessa direção. Sua experiência, acumulada ao longo de 60 anos de história, a credencia para cumprir um papel de relevância nessas áreas. Ela apóia países na realização de projetos - com financiamento e conhecimento, harmoniza políticas relacionadas à agricultura no nível internacional e oferece um foro neutro de debate.

Mas, da mesma maneira que os desafios mudaram nas últimas décadas, a FAO também precisa mudar para poder enfrentá-los. Como disse o diretor-geral Jacques Diouf na 34ª Conferência da organização, realizada em Roma agora em novembro: a nova agricultura precisa de uma nova FAO.

A FAO está ciente disso e comprometida em se transformar. Ela foi a primeira agência das Nações Unidas a submeter-se a uma avaliação externa. O resultado - disponível no site da FAO (www.fao.org) - reafirma a importância da organização: se ela não existisse, precisaria ser inventada. Mas também aponta para a necessidade de uma reengenharia administrativa, para torná-la mais eficiente, e de uma mudança no foco da produção (oferta) para o acesso e as condições de consumo. Isso implica relacionar mais a agricultura com a geração de emprego e renda.

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O compromisso da FAO com sua transformação foi reconhecido pelos países membros, que aprovaram para o biênio de 2008-2009 um orçamento de US$ 867 milhões, 13,3% maior que o anterior, interrompendo a política de crescimento zero dos anos anteriores.

A necessidade de modernizar-se para cumprir melhor sua missão e o reconhecimento de que uma abordagem multidisciplinar é cada vez mais indispensável para enfrentar os desafios atuais que irão nortear o trabalho da FAO nos próximos anos. Isso já se evidencia em algumas ações planejadas para 2008. No âmbito interno, e em discussão permanente com os países membros, a FAO definirá um plano de ação para implantar mudanças necessárias para melhorar o serviço que presta aos países. No âmbito externo, a organização promoverá, em junho de 2008, uma conferência de alto nível que abordará de forma conjunta a segurança alimentar, os desafios da mudança climática e a bioenergia.

As prioridades mundiais da FAO refletem-se na América Latina e Caribe. A nossa é uma região de abundância e que se converteu no celeiro do mundo. Apesar disso, mais de 50 milhões de pessoas ainda passam fome nela. A solução desse problema obrigatoriamente tem que considerar a inclusão dos pequenos agricultores no desenvolvimento rural, as oportunidades, riscos e desafios relacionados aos biocombustíveis e como enfrentamos os impactos das mudanças climáticas. Também o controle das enfermidades transfronteiriças, como a prevenção da gripe aviária - que felizmente ainda não atingiu nosso continente - e a erradicação de algumas delas, como a febre aftosa, por exemplo, é fundamental para apoiar o esforço exportador de nossos produtos agropecuários.

E não podemos nos esquecer que, apesar do potencial agrícola da região, a América Latina tem uma parcela importante do seu espaço rural dedicada a atividades não agrícolas - como o turismo rural, as agroindústrias e a prestação de serviços - que geram melhores empregos e maiores rendas. A importância desse setor é crescente. No início da década de 70, o emprego não agrícola representava 17% do total de postos de trabalho rural. Hoje, ele responde por mais de 55% do total (mais de 65% preenchidos por mulheres) e 70% da renda.

Entre os dias 14 e 18 de abril de 2008, em Brasília, a atuação da FAO na América Latina e Caribe e as prioridades para o próximo biênio serão debatidas e decididas na sua 30ª Conferência Regional por 33 países do Caribe, da América do Norte (México), América Central e da América do Sul. Na pauta do encontro estão temas como a ação público-privada em desenvolvimento rural, doenças transfronteiriças e as oportunidades e desafios representados pelos biocombustíveis para a segurança alimentar e nutricional e o meio ambiente na América Latina e Caribe. Como já ocorreu em encontros anteriores, espera-se também uma ampla participação de organizações de sociedade civil, ONG´s e representantes do setor privado, da agroindústria e dos pequenos e grandes produtores.

Essa também será a oportunidade de darmos um passo adiante no esforço de erradicar a fome na América Latina e o Caribe. A nossa região tem todas as condições de ser o primeiro continente em desenvolvimento a fazê-lo, e de conseguir isso sem abrir mão de suas exportações ou da produção de bioenergia. Ao contrário: ambas são meios importantes para atingir esse objetivo, ousado, mas não impossível.

José Graziano da Silva é representante Regional da FAO para América Latina e Caribe.